segunda-feira, 31 de maio de 2010

As duas culturas das religiosas


Mau interpretada como "feminismo radical", a fidelidade das religiosas ao Concílio Vaticano II levou à atual investigação das ordens religiosas dos EUA por Roma, "o esforço mais recente e amplo para sufocar um movimento dentro da Igreja que se atreveu a afirmar a liderança das mulheres".

A análise é de Ken Briggs, ex-jornalista especializado em religião do The New York Times e atual colaborador do National Catholic Reporter, 24-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.
Tom Fox fez-nos um grande serviço ao cobrir vários encontros de religiosas, tanto nos Estados Unidos quanto em todo o globo. Seu editorial desta semana destaca a notável vitalidade e perseverança que têm oferecido à Igreja Católica exemplos de compaixão e sacrifício em prol dos "últimos dentre nós". No meio de uma das horas mais escuras do catolicismo, as religiosas continuam produzindo luz, lembrando as pessoas da Igreja que existe uma dimensão do cristianismo que infelizmente está faltando em relatos da imprensa sobre o escândalo.

As irmãs ilustram a sábia observação do Papa João XXIII no início do Vaticano II de que os Evangelhos pedem o "remédio da misericórdia e não o da severidade". O Concílio foi vento nas velas de seus navios, e elas remodelaram seus ministérios para ir ao encontro das necessidades da modernidade.

O problema foi que elas logo correram para baixo de um teto de vidro. Importantes segmentos do poder clerical masculino ficaram alarmados com o entusiasmo das irmãs por renovação, interpretado como "feminismo radical", e tomaram algumas duras medidas para reverter isso. A atual investigação das ordens religiosas dos EUA por Roma é o esforço mais recente e amplo para sufocar um movimento dentro da Igreja que se atreveu a afirmar a liderança das mulheres.

As religiosas geraram uma cultura teológica que fomentou mutualidade, dignidade, justiça, liberdade, diferentes modelos de oração e de culto e uma perspectiva que sugeriu que a velha ordem da superioridade masculina precisava acabar.

A oposição a elas veio em grande parte daquela velha ordem que sempre combate a mudança, assim como todo "establishment" faz.

O crescimento da unidade e do compromisso das irmãs ao redor do mundo, que Fox descreve – possibilitado pela Internet, dentre outras coisas – é algo a ser celebrado, especialmente porque seus beneficiários são aqueles que sofrem. É uma extensão das obras de bondade que as irmãs têm realizado durante séculos. É o espírito que fundou e manteve as escolas, os hospitais e agências de serviço social católicos para atender as crises de imigrantes e de outras pessoas pobres deste país.

As religiosas impulsionam tudo isso, apesar de terem sido colocados do lado de fora do aparato de tomada de decisões da Igreja, de lhes terem sido negados todos os cargos clericais e de sempre terem estado sujeitas ao veto das autoridades masculinas. Elas merecem um imenso crédito por causa disso.

Crescentemente, aqueles que defendem as humilhações cometidas contra as religiosas citam essa dedicação aos mais necessitados para reforçar seus argumentos contra Roma. É irônico em certo sentido, já que algumas das mesmas pessoas que justificadamente louvam os atos de compaixão das irmãs não se dispuseram tanto a protestar contra o estereótipo das "freiras más".

Na minha experiência, quase todos os nascidos depois da Segunda Guerra Mundial e católicos têm uma história sobre uma freira má guardada na manga. Tornou-se uma lenda urbana, geralmente o tipo de fofoca repassada por pessoas que na verdade não vivenciaram isso por si mesmas, mas que "ouviram" de alguém. Para mim, a principal causa desse triste fenômeno é uma projeção sexista, um extravasamento de insatisfação daqueles que, em geral, não podiam se defender.

E, sem querer defender a maldade, as religiosas que eram assim provavelmente tinham uma boa razão, dadas as vidas restritivas que tinham. Além disso, minha impressão é de que os puxões de orelha e as "reguadas" eram aprovadas pelos pais como uma disciplina apropriada. Caso contrário, por que os pais não deram um fim nisso?

Mas estou divagando.

O outro lado da história que Fox relata, a inspiração que surge da consciência despertada e descoberta, é que tudo isso está ocorrendo dentro dos limites impostos pela cultura antiga. O aumento da liderança parece chegar até aí. As irmãs, sem dúvida, têm suas próprias razões prudentes para evitar protestar contra o sistema que ainda as encerra, mas, com raras exceções, não. Eles optaram por fazer coisas maravilhosas dentro de uma Igreja que oficialmente se recusa até a discutir a ordenação de mulheres ou incluir as mulheres no círculo interno dos conselhos da Igreja, de qualquer forma significativa.

O amor é o evangelista cristão mais poderoso. Perto dele, as estruturas eclesiásticas falam apenas modestamente a seu respeito. No melhor e no pior dos casos, refletem a sórdida condição humana.

Mas as religiosas também existem nesse sistema que, tenho coragem para dizer, lamentavelmente limita a sua liberdade e pode dar um exemplo confuso para os jovens homens e mulheres católicos sobre a natureza da feminilidade católica. Religiosas não pensam ou agem monoliticamente, é claro. Esse é o estereótipo. Muitas, no entanto, fazem seu ministério a partir de uma consciência íntima de uma liberdade que, como diz Jesus, o mundo não pode dar nem tirar. As religiosas manifestam isso em grande medida.

O exercício dessa liberdade no chamado do Evangelho a atender às necessidades do mundo é verdadeiramente exemplar. Mas, em si mesmo, eu não acho que isso constitua o que Fox chama de "estrutura de liderança paralela" em termos de ensinamentos e políticas que guiam a Igreja.

Essa é uma aspiração que levanta um confronto imediato com a ordem estabelecida que rejeita categoricamente qualquer noção dessas por razões que fazem sentido a qualquer pessoa que já viu estilos de liderança conflitantes tentando coexistir. De fato, o Vaticano tem uma boa razão para gostar da forma como as coisas são: a Igreja obtém um crédito merecido pela benevolência das religiosas, os trabalhos concretos de amor que elas sempre ofereceram, sem que sua autoridade masculina seja contestada.

Essa é a razão pela qual pode ser necessário que as já sobrecarregadas religiosas superem os obstáculos enfrentados por cada mulher católica desafiando abertamente aqueles que os perpetuam. O recente encontro de superioras na Itália teve como tema inspirador "mística e profecia", para imaginar a continuação de suas missões de misericórdia e de espiritualidade. A outra dimensão da profecia, de Amós a Isaías, é dizer o "Não" da verdade de Deus aos abusos de poder.

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