domingo, 27 de novembro de 2011

Ricos têm renda 39 vezes maior que a dos mais pobres

Um brasileiro que está na faixa mais pobre da população teria de guardar tudo o que ganha durante três anos e três meses para chegar à renda mensal de um integrante do grupo mais rico. Embora as pesquisas apontem quedas sucessivas na desigualdade de renda no País, dados do Censo 2010 divulgados ontem pelo IBGE mostram que os 10% mais ricos têm renda média mensal 39 vezes maior do que os 10% mais pobres. Os dados valem para a população de 101,8 milhões de habitantes com 10 anos ou mais que têm algum tipo de rendimento.A reportagem é de Luciana Nunes Leal e Felipe Werneck e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 17-11-2011.A renda média desses moradores é de R$ 1.202 mensais. Os 10% mais pobres recebem em média R$ 137,06. Os mais ricos, R$ 5.345,22. A parcela do 1% mais rico chega a R$ 16.560, 92 mensais, em média.Levando em conta os habitantes de todas as idades, o IBGE calculou a renda média mensal de R$ 668 mensais. Metade da população, no entanto, recebia até R$ 375 mensais, no período em que o salário mínimo era de R$ 510 (a data de referência do Censo é julho de 2010).A renda na população feminina é equivalente a 70% da média mensal masculina. Na população de 10 anos ou mais que tem algum tipo de renda, a média das mulheres é de R$ 983,36 mensais e dos homens, R$ 1.293,69.A distância entre as raças é ainda maior. Os negros têm renda mensal equivalente a 54% da média dos brancos. A população de origem asiática, classificada no Censo como amarela, é a que tem a renda média mais alta, de R$ 1.572,08 mensais.Entre os negros, a renda média mensal era, em 2010, de R$ 833,21 e a dos brancos chegava a R$ 1.535,94. A parcela dos 10% mais pobres entre os negros tem renda mensal de apenas R$ 120,05, mais de 57 vezes menor que os 10% mais ricos entre os brancos, que têm renda de R$ 6.919,46. Ou seja, o negro mais pobre teria de guardar toda a renda por quatro anos e nove meses para chegar a um mês de rendimento do branco. "Houve um movimento de redução da desigualdade nos últimos anos, mas daí a indicar um cenário mais róseo para o futuro há uma longa distância. Durante muito tempo se pensou que o mero desenvolvimento econômico faria a desigualdade desaparecer. Não aconteceu. Agora se pensa que as políticas como o Bolsa Família vão acabar com a desigualdade. Não vão. O que vai diminuir são políticas de promoção da igualdade racial, a ação afirmativa no acesso às universidades, ao mercado de trabalho", diz o pesquisador Marcelo Paixão, da UFRJ, estudioso das desigualdades raciais.ReduçãoAs pesquisas por amostras de domicílio vêm mostrando ano a ano a redução do índice de Gini, que mede a desigualdade. Os números mais recentes, no entanto, evidenciam a distância entre os Brasis: o mais rico, alfabetizado, com acesso a serviços básicos, concentrados em grandes centros urbanos e de maioria branca e o mais pobre, com baixa escolaridade, domicílios precários, especialmente na área rural e de população negra ou parda.Na população de 10 anos ou mais de idade com renda, o índice de Gini ficou em 0,526 (quando mais perto de zero, menor a concentração de renda e quanto mais próximo de um, maior a desigualdade). O Distrito Federal tem a maior desigualdade entre os Estados, com índice de 0,591.A renda média da população é de R$ 2.461 mensais. Os 50% mais pobres, porém, detêm apenas 12,3% do total de rendimentos. Os índices de analfabetismo são um dos indicadores com as diferenças mais gritantes entre ricos e pobres, apesar dos bons resultados da redução dos índices nacionais.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Reflexão do evangelho do último domingo do ano litúrgico de 2011.

O DECISIVO
José Antonio Pagola. Tradução: Antonio Manuel Álvarez Pérez

O relato não é propriamente uma parábola mas uma evocação do juízo final de todos os povos. Toda a situação concentra-se num diálogo longo entre o Juiz que não é outro que Jesus ressuscitado e dois grupos de pessoas: os que aliviaram o sofrimento dos mais necessitados e os que viveram negando-lhes a sua ajuda.
Ao longo dos séculos os cristãos viram neste diálogo fascinante "a melhor recapitulação do Evangelho", "o elogio absoluto do amor solidário" ou "a advertência mais grave a quem vive refugiado falsamente na religião". Vamos assinalar as afirmações básicas.
Todos os homens e mulheres sem exceção serão julgados pelo mesmo critério. O que dá um valor imperecível à vida não é a condição social, o talento pessoal ou o êxito conseguido ao longo dos anos. O decisivo é o amor prático e solidário aos necessitados de ajuda.
Este amor traduz-se em atos muito concretos. Por exemplo, «dar de comer», «dar de beber», «acolher o imigrante», «vestir o nu», «visitar os doentes ou os presos». O decisivo diante de Deus não são as ações religiosas, mas estes gestos humanos de ajuda aos necessitados. Podem brotar de uma pessoa crente ou do coração de um agnóstico que pensa nos que sofrem.
O grupo dos que ajudaram os necessitados que foram encontrando no seu caminho, não o fizeram por motivos religiosos. Não pensaram em Deus nem em Jesus Cristo. Simplesmente procuraram aliviar um pouco o sofrimento que há no mundo. Agora, convidados por Jesus, entram no reino de Deus como "benditos do Pai".
Por que é tão decisivo ajudar os necessitados e tão condenável negar-lhes ajuda? Porque, segundo revela o Juiz, o que se faz ou o que se deixa de fazer a eles, está-se a fazer ou a deixar de fazer a Deus encarnado em Cristo. Quando abandonamos um necessitado, estamos a abandonar a Deus. Quando aliviamos o seu sofrimento, estamos a faze-lo com Deus.
Esta surpreendente mensagem coloca a nós todos olhando para os que sofrem. Não há religião verdadeira, não há política progressista, não há proclamação responsável dos direitos humanos se não é defendendo aos mais necessitados, aliviando o seu sofrimento e restaurando a sua dignidade.
Em cada pessoa que sofre Jesus sai ao nosso encontro, olha-nos, interroga-nos e suplica-nos. Nada nos aproxima mais Dele que aprender a olhar demoradamente o rosto dos que sofrem, com compaixão. Em nenhum lugar poderemos reconhecer com mais verdade o rosto de Jesus.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

PRECISAMOS TER AMANTES. Jorge Bucay - Psicólogo

Psicodramatista, escritor argentino e Gestalt-terapeuta nascido em Buenos Aires em 1949 em uma família modesta no bairro da Floresta, ele se formou como médico em 1973 na Universidade de Buenos Aires, especializado em doenças mentais no serviço de ligação do hospital Pirovano, de Buenos Aires e da clínica Santa Mônica. É psicoterapeuta de casais e adultos e atualmente, seu trabalho como ajuda profissional, como ele define, é dividido entre as suas conferências de ensino terapêutico, que emite vários anos viajando pelo mundo, e da divulgação de seus livros em ferramentas terapêuticas do autor.

Amante é "alguém!" ou "algo" que nos faz "namorar a vida" e nos afasta do triste destino de "ir levando"!...
Quem é o seu amante?
Muitas pessoas têm um amante e outras gostariam de ter um.
Há também as que não têm, e as que tinham e perderam.
Geralmente, são essas últimas que vêm ao meu consultório, para me contar que estão tristes ou que apresentam sintomas típicos de insônia, apatia, pessimismo, crises de choro, dores etc.
Elas me contam que suas vidas transcorrem de forma monótona e sem perspectivas, que trabalham apenas para sobreviver e que não sabem como ocupar seu tempo livre.
Enfim, são várias as maneiras que elas encontram para dizer que estão simplesmente perdendo a esperança.
Antes de me contarem tudo isto, elas já haviam visitado outros consultórios, onde receberam as condolências de um diagnóstico firme: "Depressão", além da inevitável receita do antidepressivo do momento.
Assim, após escutá-las atentamente, eu lhes digo que não precisam de nenhum antidepressivo; digo-lhes que precisam de um AMANTE!!!
É impressionante ver a expressão dos olhos delas ao receberem meu conselho.
Há as que pensam: "Como é possível que um profissional se atreva a sugerir uma coisa dessas"?!
Há também as que, chocadas e escandalizadas, se despedem e não voltam nunca mais.

Para aquelas, porém, que decidem ficar e não fogem horrorizadas, eu explico o seguinte:
"AMANTE é aquilo que nos apaixona; é o que toma conta do nosso pensamento antes de pegarmos no sono; é também aquilo que, às vezes, nos impede de dormir.
O nosso "AMANTE " é aquilo que nos mantém distraídos em relação ao que acontece à nossa volta.
É o que nos mostra o sentido e a motivação da vida.
Às vezes encontramos o nosso "AMANTE" em nosso parceiro.
Também podemos encontrá-lo na pesquisa científica ou na literatura, na música, na política, no esporte, no trabalho, na necessidade de transcender espiritualmente, na boa mesa, no estudo ou no prazer obsessivo do passatempo predileto.

Enfim, é "alguém" ou "algo" que nos faz "namorar a vida" e nos afasta do triste destino de ir levando.
E o que é "ir levando"?
Ir levando é ter medo de viver. É o vigiar a forma como os outros vivem, é o se deixar dominar pela pressão, perambular por consultórios médicos, tomar remédios multicoloridos, afastar-se do que é gratificante, observar decepcionado cada ruga nova que o espelho mostra, é se aborrecer com o calor ou com o frio, com a umidade, com o sol ou com a chuva.
Ir levando é adiar a possibilidade de desfrutar o hoje, fingindo se contentar com a incerta e frágil ilusão de que talvez possamos realizar algo amanhã.
Por favor, não se contente com "ir levando" Seja também um amante e um protagonista DA SUA VIDA!

Acredite:
O trágico não é morrer; afinal a morte tem boa memória e nunca se esqueceu de ninguém...
O trágico é desistir de viver!

Por isso, e sem mais delongas, procure algo para amar.
A psicologia, após estudar muito sobre o tema, descobriu algo transcendental:

PARA ESTAR SATISFEITO, ATIVO E SENTIR-SE JOVEM E FELIZ, É PRECISO NAMORAR A VIDA.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Prêmio Nobel da Paz em 2011 fica com trio de mulheres

O trio de mulheres ativistas Ellen Johnson Sirleaf e Leymah Gbowee, ambas liberianas, e Tawakkul Karman, do Iêmen, venceu o Prêmio Nobel da Paz de 2011, conforme anunciou nesta sexta-feira o comitê Instituto Norueguês do Nobel, que entrega o prêmio, em Oslo, na Noruega.
O prêmio foi concedido a elas por "sua luta não violenta pela segurança e pelos direitos das mulheres na participação do processo da construção da paz".
Diferentemente dos anos posteriores, o anúncio de quem havia sido escolhido foi lido apenas em inglês e, segundo o comitê informou antes do evento começar, o texto possuía 21 linhas, um total relativamente alto para o padrão visto nas justificativas passadas.

Presidente liberiana, Ellen Johnson Sirleaf
"Não podemos alcançar a democracia e paz duradoura no mundo ao menos que as mulheres obtenham as mesmas oportunidades que os homens para influenciar o desenvolvimento em todos os níveis da sociedade", disse o comitê.
JUSTIFICATIVA
O anúncio lembrou que em 2000, o Conselho de Segurança da ONU adotou uma resolução que tornava, pela primeira vez, a violência contra mulheres em conflitos armados um assunto de segurança internacional. "Isso destacava a necessidade de as mulheres se tornarem participantes em pé de igualdade com os homens nos processos de paz".
Ellen Johnson Sirleaf foi a primeira mulher a ser eleita democraticamente em uma nação africana, a Libéria. Desde que tomou posse, em 2006, ela vem contribuindo para assegurar a paz no país, segundo o anúncio, para promover o desenvolvimento social e econômico e fortalecer o status da mulher na sociedade.
Leymah Gbowee mobilizou e organizou as mulheres independentemente de diferenças étnicas e religiosas na Libéria para colocar um fim na guerra no país e assegurar a participação feminina nas eleições. Ela vem promovendo a influência da mulher no oeste africano.
Lisa Poole/Associated Press

Ativista da Libéria Leymah Gbowee
Tawakkul Karman, mesmo nas situações mais difíceis antes e durante a Primavera Árabe, teve um papel de liderança na luta pelos direitos das mulheres e pela busca da democracia e da paz no Iêmen.
"O comitê espera que Sirleaf, Gbowee e Karman ajudem a colocar um fim na opressão das mulheres que ainda ocorre em muitos países e a deixar claro o grande potencial que as mulheres representam para a democracia e para a paz".
O comitê do prêmio Nobel havia anunciado em março que foram indicados 241 candidatos à categoria, um número recorde. O prêmio, que inclui 10 milhões de coroas suecas (US$ 1,5 milhões), será entregue em dezembro.
VENCEDORES 2011
Este é o penúltimo anúncio do Prêmio Nobel em 2011.
Na segunda-feira, o americano Bruce Beutler, o biólogo francês Jules Hoffman e Ralph Steinman, canadense radicado nos EUA, três cientistas que desvendaram segredos do sistema imunológico, abrindo caminho para novas vacinas e tratamentos contra o câncer, foram anunciados como vencedores do Nobel de Medicina --ou Fisiologia.
Hani Mohammed/Associated Press

Tawakkul Karman, ativista do Iêmen
Na terça-feira, foram conhecidos os vencedores da categoria Física. Ganharam os americanos Saul Perlmutter e Brian Schmidt e o também americano Adam Riess, que possui a cidadania australiana, pela descoberta da expansão acelerada do Universo por meio de observações de supernovas distantes.
Na quarta, o pesquisador israelense Daniel Shechtman venceu o Nobel de Química de 2011 por suas descobertas relativas a materiais cristalinos com estrutura atômica não periódica, encerrando o ciclo de laureados científicos.
Ontem, o Prêmio Nobel de Literatura foi para Tomas Tranströmer. A Academia premiou Tranströmer "porque, através de suas imagens translúcidas, ele nos dá um acesso novo à realidade".
Na próxima segunda-feira, será anunciado o vencedor do Nobel de Economia.
LAUREADOS DA PAZ
O Prêmio Nobel é entregue desde 1901 a personalidades de destaque nas áreas de ciências, literatura e paz, conforme estipulado no testamento do empresário Alfred Nobel, inventor da dinamite.
No ano passado, o dissidente chinês Liu Xiaobo foi o vencedor do prêmio Nobel da Paz. Liu foi condenado a 11 anos de prisão, em dezembro de 2009, por escrever um manifesto com outros ativistas chineses pela liberdade de expressão e eleições multipartidárias no país.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Fala em Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa do RGS


Hoje, 21 de setembro é o Dia Internacional da Paz. Esta data é celebrada a nível mundial desde 1981. A Assembléia da ONU declarou oficialmente o 21 de setembro como o Dia Internacional da Paz com o objetivo de fazer deste dia um dia dedicado ao fortalecimento dos ideais de paz, tanto dentro, como entre todas as nações e povos. Como tema, em seu 30 º aniversário, a ONU propõe: "Paz e Democracia: faça sua voz ser ouvida". Eventos, em todo mundo, nos quais participam famosos como o ator Michael Douglas, o cantor Stevie Wonder e a primatóloga Jane Goodall, entre outros... dão importância a este dia.
Em toda parte do mundo ouve-se falar de Paz, seja por aqueles que detêm o poder, ou pelos que mais sofrem pela falta de Paz. Quanto mais se sofre com os terríveis impactos da violência e do uso da força, mais se compreende que é uma loucura usar da violência, da força e da guerra para garantir a Paz. A humanidade inteira sonha com uma sociedade não-violenta, “onde as armas vão se transformar em arados, onde uma nação não levantará mais a espada contra a outra, e nem se aprenderá mais a fazer guerra” (Is 2, 2-5).
Nós não somos famos@s, somos cidad@os comuns que sonhamos uma sociedade justa, fraterna e solidária, onde todas as pessoas possam viver com dignidade, com seus direitos garantidos, onde a infância possa ser assistida, respeitada e os jovens possam ter oportunidades que os façam vislumbrar futuro no presente e assim não caiam nas armadilhas da droga, do crime...
Aqui representamos as Escolas Católicas da Zona Sul de Porto Alegre. Desde 2003 nos reunimos e juntas refletimos e promovemos ações educativas em torno do referencial da educação para a Paz e trazemos para o coletivo ações em torno de alguma questão social importante...
Este ano estamos pautando para este dia a problemática do extermínio dos jovens, e enfatizamos que os jovens dos quais falamos tem entre 14 e 29 anos, são em sua maioria pobres, negros e em situação de vulnerabilidade... Os números de homicídios destes jovens se aproximam do número de mortos em países em guerra...
Não haverá Paz sem verdade, justiça e solidariedade. Um mundo de justiça e de Paz “não pode ser criado apenas com palavras, nem pode ser imposto por forças externas, deve ser desejado e realizado mediante a contribuição de todos” (JP, 1985).
A Paz é resultado da vontade, da criatividade e do dinamismo de pessoas livres, guiadas pela razão e pelo coração, que entendem sua responsabilidade pelo bem comum e, exatamente por isso, juntam suas mãos protagonizando um mundo novo. Aprende-se Paz, fazendo Paz!

Ir.Raquel Pena Pinto é teóloga, Professora na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, Diretora do Centro Social Antônio Gianelli e representante das Escolas Católicas da Zona Sul nesta atividade.

domingo, 7 de agosto de 2011

Hans Küng: ‘Há um cisma na Igreja entre a cúpula hierárquica e as bases’

"Diagnóstico: doença terminal. A Igreja ainda tem salvação?” Esta é a pergunta que se coloca em seu último livro, publicado na Alemanha pela Editora Piper Verlag, o teólogo crítico e especialista em ética mundial Hans Küng. "Na situação atual não posso guardar silêncio”, disse Hans Küng. Na sua opinião, a Igreja católica se encontra imersa em uma grave crise. Crise que é necessário descrever com objetividade e sem preconceitos antes de aplicar a terapia adequada. Crise que se plasma, entre outras coisas, em censura, absolutismo e estruturas autoritárias.
A entrevista é de Ralf Caspary e está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 30-07-2011. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.
Senhor Küng, me chamou a atenção que seu livro está impregnado de um certo alarmismo. Não podia mais ficar calado, devia escrever este livro neste momento concreto da história. Metáforas como "doença”, "recaída”, "aumento da febre” são abundantes no seu livro. A que se deve este alarmismo?Küng: Alarma, sim, mas não alarmismo. Se me permite, explico imediatamente. Vou lhe dizer com toda a sinceridade que nestes momentos, apenas alguns meses depois da sua publicação, vejo as coisas inclusive mais pretas que a cor da capa do meu livro. Temos uma iniciativa de diálogo dos bispos que ficou esquecida. Creio que o sociólogo da religião Michael Ebertz (Friburgo) tem razão quando fala de uma segunda crise na Igreja católica, depois da crise dos crimes sexuais. O episcopado se mostra obviamente incapaz de nos comunicar o que realmente aconteceu, para que se possa encaminhar devidamente o diálogo. Seguimos sem saber como proceder para iniciar este diálogo, os bispos não se colocam de acordo e querem excluir determinados temas. Recentemente assistimos a uma série de acontecimentos muito desagradáveis que justificam tanto a minha análise quanto o meu alarma.

Você chegou a dizer que estamos na segunda fase da crise. Falou da falta de disposição para dialogar. Esclareça-nos, por favor, este ponto.Küng: Vamos supor que os bispos tenham aprendido que não podem continuar a agir de uma forma tão autoritária como vinham fazendo até agora, que vão escutar o povo. Mas não é bem assim, nem sequer aprenderam isso. Creio que nós somos o povo! As pessoas dizem: nossa paciência está chegando ao fim, queremos participar das decisões, também em nossas paróquias. Queremos escolher os nossos bispos, queremos ver mulheres nos diferentes cargos, queremos que haja agentes de pastoral, homens e mulheres, que sejam ordenados/as sacerdotes. São slogans e demandas que refletem o descontentamento das pessoas. De fato, se produziu um cisma dentro da Igreja entre os que, lá encima, pensam que podem continuar atuando com o estilo de sempre e o povo e uma boa parte do clero liberal.
Que reações seu livro produziu até agora?
Küng: Eu o enviei a todos os bispos alemães e até agora as reações foram, quando menos, cordiais. Também o enviei ao Papa Bento com uma carta cortês na qual exponho como, no fundo, minha intenção é ajudar a Igreja, embora tenha uma ideia diferente de como deveríamos proceder. Ele me fez chegar seu agradecimento, o que me parece um gesto positivo. Tenho sumo cuidado em tentar conduzir o debate com objetividade, sem ultrapassar a barreira da ofensa pessoal e sem que a questão derrape para um assunto pessoal.
Que reações provocou entre os leigos?
Küng: Em poucas ocasiões recebi tantas cartas de agradecimento pelo livro, apesar de se tratar, de fato, de uma análise algo "deprê” que pode produzir desânimo. Me agradecem muito pelo fato de que afirme que a recuperação é possível. O livro está repleto de propostas concretas. Não posso me queixar das reações, pelo contrário, me anima muito receber quase diariamente cartas de tantas pessoas, muitas vezes de pessoas simples.

Quais são, para você, os principais sintomas desta crise da Igreja católica que diagnostica no livro?Küng: Basicamente que as paróquias estão secando lentamente, em parte por causa da mensagem dogmática que vem reiteradamente prescrita de cima. Naturalmente, temos também o problema dos cargos eclesiais. No livro o ilustro com o exemplo da minha própria comunidade na Suíça. Durante muito tempo tivemos quatro sacerdotes (os "quatro cavaleiros”); hoje não resta nenhum. Continuamos a ter dois aposentados e um diácono. O diácono faz tudo de maneira fenomenal, um alemão, certamente. Não obstante, não pode presidir a eucaristia por não ter sido ordenado sacerdote. E não pode ser ordenado sacerdote porque é casado. É completamente absurdo. Temos que abordar uma série de pontos muito concretos: 1. O celibato deve ser opcional; 2. As mulheres devem ter acesso aos cargos eclesiais; 3. Deve-se permitir que os divorciados participem da eucaristia; 4. Deverão se estabelecer comunidades eucarísticas entre as diferentes confissões sem esperar outros 400 anos.
Estes são alguns pontos para a terapia. Voltemos ao diagnóstico. Como você denominaria a doença que afeta o núcleo da Igreja católica?Küng: A doença é o sistema romano. Foi introduzido pelos Papas da denominada Reforma Gregoriana, em honra a Gregório VII. Foi assim que se introduziu o papismo, o absolutismo papal, segundo o qual uma só pessoa na Igreja tem a última palavra. Isto produziu a cisão da Igreja oriental que não aceitou estas modificações. Dessa época procede o predomínio do clero sobre os leigos. Padecemos um celibato para todo o clero que se introduziu no século XI. Aqui penso que está a origem da doença. Aí surgiu o germe. Tentou-se erradicá-lo com a Reforma, mas em Roma encontrou resistência. Com o Vaticano II se tentou lutar contra tudo isto. Teve um êxito parcial, embora não se permitiu debater nem sobre o celibato nem discutir sobre o papado. Pode-se considerar que o Concílio teve um sucesso pela metade. Neste momento a situação é calamitosa. Em Roma, em vez de ter aprendido algo, como era de se esperar, e ter empreendido o caminho da liberalização, os dois Papas restauracionistas –Wojtyla e Raztinger– fizeram o contrário. Fizeram todo o possível para que o Concílio e a Igreja retrocedam a uma fase pré-conciliar.
Refere-se ao Concílio Vaticano II que tentou produzir uma certa abertura?
Küng: Sim, os frutos do Concílio Vaticano II foram excelentes: integrou o paradigma da Reforma na Igreja, incorporou as línguas vernáculas na liturgia, todo o povo participa hoje ativamente da liturgia, se revalorizou o papel dos leigos e o da Igreja oriental. Inclusive houve uma integração dos paradigmas da Ilustração, da Modernidade. Desde então se reconhece a liberdade de culto e os direitos humanos; e temos uma atitude positiva em relação às religiões do mundo e em relação ao mundo secular. Mas estes são precisamente os pontos em que Roma quer retroceder. Roma está organizada para reter o poder.

Se entendi corretamente, nas últimas décadas, na Igreja católica, se produziu uma recaída, um retrocesso, uma forte concentração no sistema de domínio romano. É isto que você critica?Küng: Sim. Isto fica claro nos seguintes pontos: primeiro, foram sendo publicados continuamente documentos sem perguntar o episcopado e sem consultar ninguém previamente. Trata-se de documentos da cúria que destacam a pretensão de estar em posse da verdade, ter o monopólio sobre a verdade da Igreja católica. Em segundo lugar, temos toda a infeliz diretriz relacionada com a moral sexual que foi sendo publicada. Esta é a linha. Em terceiro lugar, temos a política de escolha de pessoas. De forma sistemática, para os postos de bispo e outros cargos da cúria se elegem pessoais exclusivamente fiéis a essa linha. Escrevi um capítulo inteiro sobre os motivos pelos quais os bispos guardam silêncio: porque já foram selecionados, porque previamente se comprometeram, porque na ordenação prestaram juramento ao Papa, porque não podem falar livremente. Por isso escutamos de todos a mesma opinião. Os bispos se encontram em uma situação de grande pressão, por um lado a que chega de cima, por outro, a da comunidade crente.

Portanto, você dirige suas críticas também contra o monopólio do poder e o monopólio da verdade do Papa?Küng: Sim, exatamente.
Essa seria a principal ferida?
Imagino que se tivéssemos tido outro Papa na linha de João XXIII, a instituição de Pedro seria algo magnífico. Poderia ser uma instituição de guia pastoral, que inspira, que une. O papado atual é uma instituição de domínio que divide. O Papa divide a Igreja. Esta é uma tese que não está sendo suficientemente levada a sério. Segundo as últimas pesquisas, 80% dos católicos alemães querem reformas. Os 20% que não as querem são, infelizmente, os que são levados a sério. Alguns bispos sustentam que entre os católicos há dois grupos. Não é correto, não se trata de dois grupos. A maioria quer reformas. É apenas um grupo minoritário, com forte presença na mídia, que é contra as reformas. Eles não representam a Igreja que desejamos ter. Como povo de Deus, queremos uma Igreja na qual nos sentamos na mesma roda, não queremos um pequeno grupo dominante que controle tudo.
Há algo que não entendo bem. Se você critica o Papa atual e o compara com outros Papas mais liberais, então não é um problema da estrutura da Igreja, mas da personalidade do Papa.
Küng: Também recai na personalidade do Papa. Joseph Ratzinger procede de um ambiente conservador. Eu também procedo de um ambiente conservador. Isto não é nenhuma vergonha, inclusive se poderia tornar uma vantagem. Mas ele interiorizou este ambiente. Ele viveu principalmente na Alemanha sem conhecer bem o mundo. Depois se mudou para Roma onde viveu em um gueto artificial no qual não se percebe o que acontece no resto do mundo. Ao ler algumas declarações suas, como o decreto que publicou sobre as outras Igrejas sendo ainda cardeal, a gente se pergunta: onde vive este homem realmente, na lua? Agora anunciou uma campanha de evangelização nada convincente. Como se quer evangelizar o mundo com um catecismo que pesa literalmente um quilo? Pretende torturar as pessoas? Além disso, há a questão do Ensino na Igreja. Ele fala expressamente do "ensino do Papa”. Isto, evidentemente, não há pessoa ilustrada que leve a sério. Quem vai admitir a estas alturas que uma pessoa sozinha reclame para si o poder legislativo, executivo e judiciário sobre uma comunidade de mais de um bilhão de pessoas? Em terceiro lugar, está se dando um impulso problemático ao tipo de religiosidade popular tradicional que se quer promover. Assim acontecem essas cenas terríveis na qual um Papa beija o sangue de seu predecessor em seu relicário de prata. Mas, bom, onde estamos? Este é o obscurantismo medieval.
Aprecio o fato de que se indigne quando fala do Papa atual.
Küng: Não, não se trata do Papa atual.
Em seu livro o critica com dureza. Fala, por exemplo, de boato e de esbanjamento, de estruturas autoritárias. Se poderia censurar: Küng fala com certo ressentimento?
Küng: Não. Creio que continuo tendo a capacidade de poder falar muito bem com o Papa pessoalmente. Continuamos mantendo correspondência e ele sabe que minha preocupação é simplesmente a Igreja; mas que tenho uma concepção diametralmente oposta à dele no que se refere ao caminho a seguir. Interessa-me ressaltar que não chegamos a esta situação pelo Papa Ratzinger, mas em decorrência de uma evolução desde o século XI. Embora Joseph Ratzinger e seu predecessor tenham feito todo o possível para voltar a um paradigma medieval da cristandade.
Sr. Küng, o sistema romano não se fundamenta no Novo Testamento e na História da Igreja?
Küng: Não. A própria palavra "hierarquia” não a encontrará no Novo Testamento. Aparece seis vezes a palavra "diaconia” com a famosa frase: "quem quiser ser o primeiro, seja o servo de todos”. Nessa mesma linha temos também a cena do lava-pés. Mas o Papa quer ser senhor entre os senhores. Aparece como um faraó moderno. Se observarmos as cerimônias na Praça São Pedro, uma só pessoa está no centro, ao passo que os bispos se mantêm à distância, como figurantes. Ninguém tem nada a dizer, apenas uma pessoa fala, apenas uma pessoa decide tudo. Esta não é uma Igreja de nosso tempo. E não corresponde absolutamente ao Novo Testamento nem à sua época, onde reinava a fraternidade, onde as mulheres estavam presentes e onde havia uma comunidade carismática, como se vê nas comunidades paulinas.
Todo o contrário do que se pratica hoje. Atualmente, reina uma estrutura medieval que, no princípio, só se encontra nos países árabes. Recorda-nos o comunismo: baseia-se no secretário de um partido único que decide tudo. O resto foi escolhido em função de sua lealdade à linha papal. O mesmo acontece com os bispos. Embora haja cada vez menos crentes que aceitam este sistema autoritário. Nem na Arábia se aceita mais os autocratas. Eu defendo que na Igreja católica os autocratas também não tenham nenhum futuro.
Você disse que a Igreja católica não está à altura da época moderna. Não obstante, se poderia objetar que essa é precisamente sua vantagem. Em que você pensa que deveria se transformar? Em uma empresa moderna em sintonia com os tempos atuais? Nesse caso, não ofereceria nenhuma alternativa.
Küng: Não é que eu seja um partidário absoluto da modernização. A Igreja deveria, em primeiro lugar, voltar às suas origens. Trata-se de ver se ainda podemos apelar a Jesus de Nazaré ou não. No meu livro descrevo uma cena: é impensável que se Jesus de Nazaré aparecesse em uma cerimônia do Papa, tivesse lugar. É simplesmente uma manifestação de poder pomposa e imperial, onde todos aplaudem e os senhores deste mundo participam para serem vistos e recolher votos. Essa imagem não tem nada a ver com a Igreja que Jesus queria, ou seja, não tem nada a ver com a comunidade de discípulos de Jesus. Não se trata de modernizar a qualquer preço. Em determinadas circunstâncias, precisamente será preciso oferecer resistência à Modernidade, justamente nos aspectos nos quais é desumana. Escrevi suficientes livros críticos com a Modernidade, por exemplo: "Anständige Wirtchaften” (Uma economia honrada), que trata sobre a falta de moral da economia. O que não pode acontecer é que adotemos como solução a Idade Média, quando deveríamos dar o passo da Modernidade à Pós-modernidade.
Hans Küng apela para Jesus, o Papa apela para Jesus. O que pode fazer um leigo diante destas duas tentativas de legitimação?
Küng: Deveria ler a Bíblia, assim se daria conta de onde está Jesus. Quando Ratzinger, na qualidade de teólogo, também como Papa, escreve sobre Jesus – embora realmente não devesse que escrever livros, mas dirigir a Igreja – o que faz sobre o Cristo dogmático que caminha sobre a terra? Não fala de que Jesus contradizia as instituições religiosas de seu tempo, de que no final foi assassinado por aqueles que se consideravam ortodoxos. Pelo contrário, sempre fala do Cristo dos dogmas, da Igreja e da administração.

Voltemos aos bispos. Você mencionou que são todos muito fiéis à linha papal, e que se trata, de fato, de um grupo hermético e estanque. Como se chegou a isto?É como se o Papa pudesse nomear sozinho todos os bispos. Sobretudo, se comprometem com sua linha. Acontece literalmente como no partido comunista, onde ninguém tem nada a dizer salvo o chefe de Moscou. Por isso, todos dizem a mesma coisa. Se falas individualmente com os bispos, te dizem: "Você tem razão, evidentemente, mas...”.
Se houvesse apenas um bispo na República Federal da Alemanha que, por fim, dissesse como está a situação, que assim não se pode continuar, que é preciso fazer reformas, viriam por cima dele de Roma e do Vaticano, interviriam através do núncio, etc. Também teria contra si o resto dos bispos, em especial a facção de Meisner, que procura exercer o terror psicológico na Conferência Episcopal e, naturalmente, toda a cúria romana. Teria contra si todo esse pequeno grupo de conservadores e suas agências de imprensa, as quais divulgam continuamente notícias. Teria que ser muito forte. Embora pudesse contar, ao menos, com o apoio do povo.
No centro de sua crítica está o sistema romano. Esta questão já foi abordada. Na conversa prévia à entrevista você comentou que preferiria não falar dos casos de abuso sexual. Não obstante, o menciono porque há um ponto que deveríamos esclarecer: estes casos de abusos sexuais fazem, do seu ponto de vista, parte de um problema estrutural? Em sua crítica ao papado você fala justamente de problemas estruturais.
Küng: Evidentemente. Sempre houve uma aversão em relação à sexualidade, não apenas na Igreja, mas também na Antiguidade. Mas temos o problema do celibato do clero, cuja origem remonta às normas impostas pelos Papas do século XI. Não quero dizer, em absoluto, que o celibato desemboque necessariamente na homossexualidade ou no abuso sexual. Em absoluto. Mas quando dezenas de milhares de padres reprimem sua sexualidade e, por mais que sejam ótimos párocos, não podem ter esposa nem família, então temos um problema estrutural. Estas condições devem ser mudadas definitivamente. Embora pareça ser um tema sobre o qual não se deve discutir. O Bispo de Rottenburg fez uma conferência fabulosa sobre o Espírito Santo, ao qual é preciso se abrir, e se manifesta a favor do diálogo; mas, no dia seguinte, leio na imprensa – para grande decepção de muitos dentro e fora da diocese – que o próprio bispo, que fala tão maravilhosamente, suspendeu uma jornada sobre a sexualidade em sua própria academia. O que nos resta?
Essa jornada estava prevista para o final de junho e o tema era a moral sexual atual.
Küng: Sim, e em vez de participar e defender suas ideias nas quais está tão bem formado, se esquiva. Desautoriza a diretora da academia e todos aqueles que querem participar. Dessa forma, deixa claro que o diálogo de que fala não é mais que uma frase vazia.

Como pensa que a Igreja católica está agindo em relação aos casos de abusos sexuais?Küng: Segue sem adotar uma postura clara, por exemplo, sobre se os agressores deverão responder diante de um tribunal civil ou como vai se proceder, como se deduz das últimas notícias que chegam de Roma e dos Estados Unidos. Na Alemanha, dizem que já se desculparam e se dá o caso por encerrado. Ao mesmo tempo, nenhum bispo quer falar de que sejam questões estruturais, nem de que é preciso abordar de uma vez por todas temas como o celibato dos homens ou a ordenação de mulheres. Mas, por que não? O que se esconde por trás disso, na minha opinião, é simples e chama-se covardia, o contrário dessa franqueza apostólica que caberia esperar e da qual se fala na Bíblia, da mesma forma como os apóstolos falavam com liberdade. Os bispos atuais calam. E, se há ocasião para exercer o seu poder, o exercem.
É uma vergonha que se vaie o presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha no Dia da Igreja. Por quê? Porque ele, de forma arbitrária, tomou a palavra para criticar o Manifesto dos teólogos. Quando o Manifesto dos teólogos – assinado por 300 – é redigido em termos muito educados. Assim não se pode continuar.
Até aqui o diagnóstico da crise. Neste contexto você recorre continuamente à metáfora da enfermidade; passemos agora às propostas para a terapia. Você tem uma imagem concreta da reforma da Igreja. Da nossa conversa deduzo que a reforma que o Sr. Küng tem em mente passa pela eliminação total da instituição da Igreja.
Küng: Não, pelo contrário. Gostaria que reconstruíssemos a instituição da Igreja a partir de baixo, evidentemente, com base no Novo Testamento e no humanitarismo.
Então, é preciso se desfazer totalmente das estruturas atuais ou não?
É preciso abolir, evidentemente, o absolutismo do Papa. Embora se possa manter e apoiar perfeitamente uma instituição que dirija a pastoral, presidida por um bispo em Roma, sempre que for na direção do Evangelho. Poderia ter incluído uma função ecumênica. O que critico é que uma só pessoa queira dizer tudo e, por exemplo, que destitua um bispo, como voltou a fazer o Papa Ratzinger, pela primeira vez desde o Concílio.
Temos o caso do bispo Morris da Austrália. Foi destituído porque disse que não tinha mais padres e pedia a abolição do celibato e que se admitisse mulheres ao sacerdócio. Quando se cessa uma pessoa de seu cargo desta forma só cabe concluir: esta não é a Igreja de Jesus Cristo, isto é um sistema que exige uma total identificação e nem sequer aos seus bispos é permitido a menor divergência.
Não obstante, a instituição do papado lhe pareceria aceitável se o Papa fosse mais liberal, mais aberto? Ou diria que esta função do papado já não está em consonância com os tempos atuais?
Não. Sempre fui a favor do equilíbrio, do check and balance. É bom que haja uma comunidade, também é bom que haja algumas autoridades. Um homem como João XXIII teve um efeito maravilhoso na Igreja. Fez mais em cinco anos que Wojtyla com suas dezenas de viagens. Mudou toda a situação. Foi uma grande oportunidade. Não obstante, Sr. Caspary, devo lhe confessar que hoje tenho mais confiança nas paróquias e não o quero privar de uma boa notícia que recebi. Duas paróquias de Bruchsal, as comunidades romano-católicas de St. Peter e a comunidade paroquial de Paul Gerhardt, evangélica, escrevem: "Damos por terminada a divisão que durante quase 500 anos a cristandade viveu em nossa zona”. E acrescentam – espero que isso se publique logo: "Reconhecemos que em todas as paróquias que assinam este comunicado se vive igualmente como seguidores de Cristo e como comunidades de Jesus Cristo. Reconhecemos que em nossas paróquias Jesus Cristo nos convida à mesa do Pai e sabemos que Ele não exclui ninguém que queira segui-lo. Pela presente, manifestamos expressamente a nossa recíproca hospitalidade”.
Espero que haja muitas paróquias na Alemanha que façam o mesmo. Caso os de cima não queiram, em nível paroquial podemos dar por superada e finalizada essa cisão.

Como você imagina essa Igreja construída de baixo para cima? Quais seriam seus fundamentos institucionais? Não haveria um risco de caos, de que a Igreja se dividisse ainda mais em múltiplas direções?Küng: O que acabo de ouvir de Bruchsal é justamente o contrário de uma cisão. Aproxima as paróquias. E na época do Concílio desfrutamos de grande unidade na Igreja. A divisão atual vem de cima porque se tentou invalidar o Concílio, porque alguns estão convencidos de que é preciso reintroduzir a missa em latim. Diante destes fatos é preciso protestar. É possível oferecer resistência como no caso das coroinhas. Os crentes disseram simplesmente: queremos que haja coroinhas e pronto. Agora, os de cima procuram estabelecer que, ao menos nas missas em latim, não haja mulheres. Necessitamos que haja uma resistência ativa, do contrário a Igreja vai a pique. Estamos em uma situação desesperada, perdemos praticamente toda a geração jovem. Esta é a diferença com relação aos países árabes onde centenas de milhares de pessoas saem às ruas. Há hoje 100.000 que saem às ruas para pedir reformas na Igreja católica? Continuamente me encontro com pais que dizem: "Você sabe, me dá tanta pena que, sendo católicos convencidos, depois de ter tido sempre um bom ambiente familiar em casa, não consigamos que nossos filhos participem da Igreja”.

Falou de desobediência civil. Pode concretizar isso? O que fazem os padres nas paróquias?Küng: Os párocos, em sua maioria, praticam uma desobediência discreta. Se um pai evangélico se aproxima para receber a comunhão, não lhe perguntam se é evangélico, assim como se chegou a fazer nas jornadas de jovens de Colônia. Também não anunciam, assim como se volta a exigir que, em conformidade com o Papa, só determinadas pessoas possam participar da eucaristia. Os párocos, os bons párocos, prescindem dessas normas e se viram bastante bem. Embora eu seja a favor de que houvesse mais párocos como os de Bruchsal que trouxeram à luz sua resistência, de forma que as pessoas se deem conta de que avançamos.

A Igreja católica é capaz de iniciar ela mesma a reforma a partir de dentro?Küng: Bom, conheço o sistema a partir de dentro e luto para que as reformas sejam feitas. Sei que tenho milhões de pessoas do meu lado. Neste sentido é questão de tempo. Simplesmente não podemos avançar baseando-nos em um senhor absoluto que prescreve o que deve ser feito na cama (palavra chave: a pílula...) e que estabelece todas as normas desde seu limitado campo de visão. Creio que a política papal demonstrou já ser um fiasco e não nos deveria corromper mais. A única pergunta que também se fez no partido da União Soviética, o partido comunista, é esta: há algum Gorbachov que possa nos tirar desta choça?
Quer isto dizer que seria favorável a algo como uma Perestroika na Igreja? Isso requer uma personalidade muito carismática.
-Reclamo uma Glasnost e uma Perestroika, especialmente para as finanças da Igreja. Gostaria de saber como realmente se pagam as coisas em Roma, quem parte o bacalhau.
Esse seria outro assunto. A Perestroika seria para você...
Küng: ...sim, a independência.
Veremos se suas ideias e sua visão da Perestroika caem em solo fértil e o que vai acontecer nos próximos 20 anos dentro da Igreja católica. Uma vez lido o seu livro, me inclinaria por um certo ceticismo e pessimismo. Não obstante, se encontra entre as coisas boas, penso.
Küng: Só posso apelar e esperar que haja suficiente gente que se ponha em pé e, por fim, se rebele.
[Audio y transcripción original: http://www.swr.de/swr2/programm/sendungen/wissen/ist-die-kirche-noch-zu-retten/-/id=660374/nid=660374/did=8085352/1gkcaxu/index.html
Traducción del original alemán a cargo de Ana Moreno - anamorenop@yahoo.es]

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Abandono do Método Ver-Julgar-Agir

Dias atrás, ao escrever sobre o cinquentenário da Mater et Magistra, lembrei que o papa João XXIII, definiu como o melhor método para a formação nos princípios da justiça social aquele que depois foi consagrado pela Igreja latino-americana: conhecer a situação concreta, examinar essa realidade à luz da Palavra e da doutrina da Igreja e, por fim, agir "de acordo com as circunstâncias de tempo e de lugar" (MM, 236).
Lembrava ainda que o "papa buono", neste mesmo parágrafo da encíclica definia tal método como ver, julgar, agir. Salientava que, segundo o papa, é necessário "que os jovens, não só conheçam esse método, mas o empreguem, concretamente, na medida do possível, a fim de que os princípios adquiridos não permaneçam para eles no campo das ideias abstratas, mas sejam traduzidos na prática" (MM, 237).
Em meu artigo afirmava que um dos sinais mais evidentes do inverno tenebroso da atual Igreja, especialmente aqui na América Latina, é o aborto progressivo deste método. Documentos recentes dos episcopados e das Igrejas locais revelam a intenção premeditada de enterrar definitivamente este precioso legado consagrado por um documento tão valioso do Magistério da Igreja.
O sepultamento do método ver-julgar-agir começa aqui na América Latina com as Conclusões de Santo Domingo, no início da década de 1990. Daí para cá os documentos oficiais foram abandonando-o progressivamente. O mais recente exemplo disso pode ser encontrado nas Diretrizes da ação evangelizadora da Igreja no Brasil, aprovadas em maio passado.
O abandono do método ver-julgar-agir revela a pendência clara da Igreja para a direita. Por se tornar cada vez mais conservadora e fundamentalista, ela rejeita todo método que possa criar nos cristãos e nas cristãs o espírito crítico e a capacidade de enxergar melhor a realidade e as causas de determinados problemas. Além disso, revela uma pobreza cada vez maior no campo teológico e um desconhecimento crescente da pedagogia bíblica.
De fato, se observarmos atentamente a tradição profética e a prática de Jesus, é possível perceber que o método utilizado não tem como ponto de partida a teologia, mas a realidade. Para propor a conversão, a mudança, tanto das pessoas como das estruturas sociais, os profetas e Jesus não partem de afirmações teológicas substanciais, mas do que está acontecendo. Após terem mostrado como se encontra a realidade, fazem o confronto com o que é considerado palavra de Deus e convidam a mudanças radicais, a reviravoltas.
No que diz respeito aos profetas, os exemplos são numerosos e seria impossível falar de todos eles. Bastaria lembrar dois episódios que são bem emblemáticos do método usado pelos profetas. O primeiro é o caso do adultério de Davi (2Sm 12,1-14). O profeta Natan não chega até ele fazendo pregações teológicas ou recordando as normas da lei mosaica. Começa contando uma história que obriga o rei a dar de cara com a realidade e com a sua injustiça. Somente depois de o rei ter caído na real o profeta vai fazer a sua pregação teológica e convidá-lo a uma atitude de mudança. O outro episódio emblemático é a ação simbólica de Jeremias que se coloca na porta do Templo e começa a proclamar em voz alta a lista dos pecados do povo (Jr 7,1-28). Também ele não vai fazer uma pregação sobre os preceitos da Torá e nem tão pouco sobre quem é Javé. Começa sua ação levando o povo a perceber a realidade.
Se vamos para a práxis de Jesus, percebemos a mesma coisa. Ele não é um fariseu e nem um doutor da Lei, que vai fazendo elucubrações teológicas e citando textos bíblicos, dando aulas de teologia. De acordo com a maioria dos exegetas, Jesus não tinha grandes conhecimentos da Torá, uma vez que o estudo da Lei não acontecia no ambiente de Nazaré, onde ele viveu. O conhecimento bíblico de Jesus era mediano, próprio dos moradores da Galileia que viviam distantes de Jerusalém, o centro teológico e cultual da época.
Jesus não sai pela Palestina fazendo discursos teológicos. Ele se insere no meio do povo e, a partir da contemplação da realidade, vai ajudando esse mesmo povo a perceber a presença amorosa de Deus. Não parte de Deus para chegar à realidade, mas parte da realidade para fazer as pessoas se darem conta do amor misericordioso do Pai. Começa falando de comida, de bebida, de roupa, das preocupações cotidianas, convidando os homens e as mulheres a contemplarem a erva do campo e os pássaros do céu (Mt 6,25-34), e, a partir do concreto, chegar até a providência divina e à centralidade do Reino de Deus e da sua justiça (Mt 6,33).
Em outras ocasiões, para explicar como a Palavra age nas pessoas, parte da vida concreta dos lavradores, do trabalho doméstico das mulheres (Mt 13). Para dizer como deve ser a conexão entre o discípulo e o Pai, parte da experiência dos trabalhadores na agricultura, que certamente eram maioria absoluta, senão a totalidade, dos seus ouvintes (Jo 15,1-6). Para explicar como é o seu cuidado e o cuidado do Pai para com as pessoas, fala da atividade do pastor, cuidador de ovelhas (Jo 10,1-21).
Portanto, Jesus não se preocupa em "partir de Deus", como queriam os fariseus e os legalistas doutores da Lei, preocupados com as picuinhas religiosas e com as precisões teológicas. Jesus partia da vida real, concreta, do seu povo. Como bom pedagogo sabia que esse método funcionava realmente e possibilitava às pessoas compreenderem o que precisavam compreender para aderir à sua proposta de Reino de Deus. E os Evangelhos são unânimes em nos mostrar que o método de Jesus funcionou e que o povo entendeu plenamente a sua mensagem. "E uma grande multidão o escutava com gosto" (Mc 12,37).
A obsessão em querer "partir de Cristo" revela-se falsa e ideológica. Falsa porque se afasta da tradição bíblica e da intuição de grandes santos como João XXIII. Ideológica porque mostra claramente que por trás desse abandono está a intenção clara de não utilizar um método pastoral que eduque o povo de Deus, tornando-o sujeito de sua própria libertação. Pretende-se que a fé cristã funcione como ópio e não como força libertadora e transformadora. Deixando de lado a realidade, ou camuflando-a com pseudo-afirmações teológicas, se esconde a verdade e não se permite a libertação que dela viria. A pregação e a evangelização se tornam "discurso lacunar": muito palavreado para esconder aquilo que deveria ser realmente dito.
Infelizmente a atual hierarquia vai perdendo a sua condição profética e, por isso, perde também a sua capacidade de evangelizar a partir das situações concretas. O evangelho passa a ser uma abstração, um falatório que não encontra ressonância em lugar nenhum, porque não é anunciado dentro das condições reais das pessoas. E nesse contexto ressoa a palavra profética de Dom Oscar Romero, pronunciada no dia 18 de fevereiro de 1979: "Os fatos concretos, Deus não os despreza. Querer pregar sem referir-se à história em que se prega não é pregar o Evangelho. Muitos gostariam de uma pregação tão espiritualista que deixasse os pecadores como estão, que não dissesse nada aos idólatras, aos que estão de joelhos diante do dinheiro e do poder.
Uma pregação que não denuncia as realidades pecaminosas, no seio das quais se faz a reflexão evangélica, não é Evangelho". Por causa disso, como amava repetir Dom Hélder, os atuais documentos eclesiásticos da América Latina voltam a ser "belas teorias sobre uma dura realidade". Ou, como diz Lepargneur, "na prática a teoria é outra".
Poucos dias atrás encontrei um padre que acabava de chegar de sua primeira viagem à Europa. Visitou Roma e vários outros "lugares sagrados" europeus. Lá o método ver-julgar-agir nunca foi adotado pela Igreja. Mas esse padre estava aterrorizado com o que viu. Nas igrejas, nas missas, quase ninguém. Só algumas velhinhas arrastando-se com muita dificuldade. A missa tinha que terminar na hora exata, pois na hora marcada os filhos ou netos apareciam, mas apenas para buscar suas mães ou avós.
Isso não me assustou, pois, tendo morado por lá, já conhecia essa situação, a qual deve ter se agravado nos últimos anos. Porém, este é o futuro de uma Igreja que voltou a abandonar o cuidado com a realidade, que insiste em fazer discursos teológicos estéreis, completamente desconectados da situação real do povo. Esse é o futuro de uma igreja que não quer agir "de acordo com as circunstâncias de tempo e de lugar" (João XXIII). Se não soubermos substituir "a santidade de reputação e de fachada pela santidade interior e real, as criaturas mais conscientes, que têm a maior sede de justiça, que são mais desconfiadas e reais, correm o risco de perder a fé" (Dom Helder Camara).

JOSÉ LISBOA MOREIRA DE OLIVEIRA
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília Adital

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A revolução do educar


Marcelo Barros
Monge beneditino e escritor
Adital

No Brasil, a primeira semana de agosto é marcada pela volta das crianças e adolescentes às salas de aula. Enquanto nos países do hemisfério norte, as grandes férias se dão no meio do ano, para eles tempo de calor e repouso, no Brasil e outros países do sul, julho marca uma breve pausa. Agosto é o mês em que, na maioria das escolas de ensino básico, se retoma o segundo semestre letivo.

Pesquisas recentes revelam que, em vários aspectos, o Brasil está ocupando o lugar da sétima economia do mundo. Entretanto, um recente congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) denunciou: ao mesmo tempo, em termos de educação, o Brasil não passa do 88º lugar entre os países. Infelizmente, ainda temos 15% de analfabetos no país. Nos últimos dez anos, o acesso ao ensino básico melhorou muito, mas ainda é muito alto o índice de evasão escolar, principalmente por parte de crianças e jovens. Os governos criaram incentivos para que as famílias pobres mantenham as crianças e adolescentes na escola, mas não basta uma Bolsa Família, quando a realidade humana e social está deteriorada. É preciso um investimento mais de caráter pedagógico e comunitário. Seria necessário um verdadeiro mutirão de jovens para ajudar jovens e adolescentes a superarem o clima negativo nas famílias e permanecerem na escola. A educação é um processo mais amplo do que a escolarização, mas principalmente nos primeiros anos, precisa da instituição formal para se fortalecer.

Em vários países da América Latina, se consolida um processo social e político novo. Povos indígenas e comunidades afro-descendentes se reorganizam e se unem em torno de suas necessidades básicas e do fortalecimento de suas culturas. Novas constituições nacionais como a da Venezuela, do Equador e da Bolívia priorizam a educação como fator fundamental de construção da cidadania. Organismos internacionais da ONU já declararam a Venezuela como país livre do analfabetismo. E o bolivarianismo tem dado muita força à cultura popular e suas expressões.

Também o governo de Evo Morales, na Bolívia, realizou uma grande campanha de alfabetização em massa. No Equador, embora o governo compreenda que o fundamental é a justiça social, sabe também que nenhuma mudança profunda será possível sem passar pela educação de base, alfabetização de adultos e democratização do ensino e da universidade.

No Brasil, estamos atrasados. As elites brasileiras nunca se incomodaram em democratizar a educação. E as universidades continuam a ser ilhas de difícil acesso, sem pontes nem barcos que as liguem às ruas do país real e à vida do povo ao qual deveriam servir.

Enquanto desde o século XVI, a Colômbia, o Peru, a Bolívia têm boas universidades públicas, no Brasil, somente no século XIX, tivemos o primeiro curso de direito em Olinda e São Paulo, fato comemorado no dia 11 de agosto de cada ano. "O próprio Ministério da Educação só existe no governo brasileiro a partir de 1930” (revista Fórum, junho 2009, p. 8).

No momento atual, o governo brasileiro parece continuar um bom trabalho no sentido de garantir a democratização do ensino de qualidade, a competência na gestão das escolas e do ensino, assim como a inclusão social dos mais pobres em todos os níveis da escolaridade.

Este caminho novo e democrático da educação deve clarear uma opção pelas crianças que têm mais dificuldade e não por aquelas que já merecem notas melhores. Devemos estimular os professores a optarem pelos pequenos e fracos e não pelos estudantes mais capazes, assim como o Estado não deve bonificar ou pagar mais professores que conseguem melhores notas para suas classes. Não se trata de um campeonato de excelências, nem de concurso de meritocracia e sim de educadores que se dedicam ao elo mais frágil da corrente e sabem que os problemas são mais complexos do que apenas um sistema de notas e conceitos.

Para quem tem fé e busca viver uma espiritualidade ecumênica, a educação é a tarefa que mais nos aproxima dos grandes líderes espirituais da humanidade. Todos foram educadores e, de certo modo, optaram pelos últimos. Jesus Cristo, por exemplo, se revelou como Sabedoria Divina oferecida a toda pessoa que aceita acolhê-lo. E mostrou que neste processo de educação o importante é conhecer e praticar a verdade. Como ele afirmou: "A Verdade vos libertará” (Jo 8, 33).

domingo, 10 de julho de 2011

E a Igreja se fez show...


Por Cesar Kuzma *

No domingo, dia 19 de junho, assisti a apresentação do Pe. Reginaldo Manzotti no "Domingão do Faustão". Com certeza, o Pe. Manzotti alcançou a fama que procurava há muito tempo e hoje se tornou tão conhecido como o Marcelo Rossi (a quem imitou e seguiu) e outros "midiáticos" da Igreja Católica no Brasil e, também, do mundo da música e do entretenimento. No entanto, tal apresentação me faz parar e refletir alguns pontos: 1) O que representa para a Igreja Católica atual uma personalidade assim? 2) O que ele traz de novo, ou se realmente ele traz algo novo? 3) Que imagem de Igreja estamos passando para a sociedade com uma pessoa assim e, obviamente, para a própria Igreja, hoje tão carente de formação? Cada um destes pontos merece uma análise profunda, que não faremos, a ideia é apenas uma breve reflexão sobre o assunto, crítica, mas respeitosa.

O Documento Lumen gentium do Concílio Vaticano II (1962-1965), que apresenta uma reflexão dogmática sobre a Igreja, destacando sua natureza e missão, começa assim: "Lumen gentium cum sit Christus", ou seja, a Igreja é luz para os povos assim como Cristo. Ser luz, no entanto, é transmitir a mensagem do Evangelho, na qual Cristo é a luz. A Igreja, que somos nós, não tem uma luz própria e não prega a si mesma e, consequentemente, não conduz as pessoas a si, pois ela não é o fim, o destino de todos. A Igreja é iluminada pela luz de Cristo, cujo Espírito a conduz. A Igreja, como "luz do mundo" anuncia Cristo e o seu Reino e conduz as pessoas a este fim, a este éschaton (destino último); assim ela é sinal e sacramento. Este mesmo documento apresenta-nos o papel dos batizados, que compõem a Igreja de Cristo, discernindo a sua vocação e missão. Isso fica claro quando ela nos remete a questão do serviço, um serviço ao Reino, a exemplo de Jesus, que na sua humildade e pequenez conduziu as pessoas à esperança num reino de amor, justiça e paz; um Jesus que declarou bem-aventurados os pobres e, a partir deles, iniciou o seu testemunho, fazendo-se pobre para de tudo nos libertar, sendo ponto de justiça, caminho e verdade.

Preocupa-me saber o que representa o Pe. Manzotti para a Igreja e para a sociedade brasileira atual. Será que ele representa o seguimento de um Jesus pobre da Galiléia, tão profundamente descrito nos Evangelhos, ou será que ele representa a si mesmo, diante do orgulho e da vaidade, pecado tão sutil aos membros da mídia, ou daqueles que são feitos ou produzidos por ela? Quem fez o Pe. Manzotti e a sua fama e o que ele representa? Será que ele representa a Igreja Católica ou representa as gravadoras e emissoras de rádio e TV em que atua? O Pe. Manzotti anuncia a "boa nova" do Evangelho ou anuncia a "sua boa nova", tão frágil e carente de conteúdo. Com certeza, o Pe. Manzotti não representa a Igreja que eu sigo e acredito, pois sua pregação, atuação e postura estão muito longe (mas longe mesmo!) do que entendo como proposta de seguimento, discipulado e missionariedade. Não falo apenas das letras de suas músicas (muitas delas, por sinal, com graves erros teológicos que educam o povo erroneamente); não falo das suas fotos sensuais nos álbuns dos CDs; não falo dessas situações, pois é pequeno demais e nem vale a pena; mas falo da postura, atuação e pregação que deve ter um cristão, quer ele seja um leigo, um religioso ou um padre, mas uma atuação de seguimento e de exemplo... Lumen gentium! É uma pena, pois um projeto de inculturação da fé deveria ser um serviço de integração com a sociedade e não uma maneira de ser refém desta, juntando seu capital, glamour e aparência. Uma Igreja que propõe discipulado e missionariedade com o Documento de Aparecida (2007) fica a mercê diante desta forma de "evangelizar". O que representa o Pe. Manzotti? Bem, certamente, representa a si mesmo e a sua imagem...

É evidente que sua pregação não traz nada de novo, pois dentro de músicas modernas se esconde uma postura de Igreja fechada e clerical, que coloca o padre (o sacerdote, maneira como ele sempre se apresenta) em destaque diante dos fiéis. Antes tínhamos o padre que apenas rezava a sua missa, deixando o povo na expectativa, como alguém que sempre recebe. Agora temos o mesmo padre com suas vestes carregadas e pomposas (como de antigamente) tornando-se um cantor e animador de auditório em programas de televisão e em praças públicas pelo Brasil. Não negamos que a Igreja deva adotar uma nova postura diante da sociedade moderna e pós-moderna, de maneira a integrar mais as pessoas e seus novos problemas e questionamentos, acontece que posturas assim envolvem o povo em luzes e sons, transformando o altar num palco e a Eucaristia num show, totalmente oposto aos ensinamentos da Igreja e totalmente contraditório com a proposta de Jesus, que se tornou igual e semelhante ao seu povo e só assim pôde conduzi-los no caminho do Reino (Fl 2,6-9). O Pe. diz que não faz show, fico em dúvida, então, para saber o que ele faz... Um dos seus programas de televisão chama-se "evangeliza show", algo próximo ao "show da fé" de R. R. Soares. Há que se entender que Igreja não é show business. Quando a Igreja passa a ser show ela deixa de ser comunidade, ela deixa de ser o local onde as pessoas se reúnem para partilhar do mesmo pão, ao redor de uma mesma mesa, tornando-se um só, em Cristo. Quando a Igreja se torna show ela deixa de ter eclesialidade, pois tira dos seus membros a participação ativa diante de sua missão, pois ninguém se conhece, todos são "turistas religiosos" atrás de um cantor, que neste caso, também é padre. Quando a Igreja se torna show ela se distancia drasticamente da proposta do Evangelho de Jesus, que nasceu pobre numa estrebaria, que viveu pobre na Galiléia e que morreu pobre e sozinho numa cruz em Jerusalém.

Mas alguém poderá dizer: mas ela fala tão bem, ele atrai tanta gente... Não nego que tenha méritos, e deve haver, mas questiono a forma e o modelo com que faz tais coisas. Até que ponto as pessoas seguem a Cristo e não o Padre? Até que ponto as pessoas vão à missa pelo Padre e não pela comunidade? Até que ponto as pessoas estão usando isso para um alimento pastoral e engajamento, e sim, para um aumento do individualismo e do culto ao "Eu-com-Deus", distanciando-se de uma proposta de Igreja de comunhão? Até que ponto a mensagem do Evangelho é atrair mais pessoas para a Igreja Católica (ou para outra Igreja)? Esta nunca foi a proposta de Jesus Cristo.

Quando questionado pelo rico faturamento que seu projeto traz, ele rapidamente diz que o dinheiro é para o projeto "Evangelizar é preciso" e não para ele. Mas o que é este projeto, que não fazer a divulgação dos trabalhos, CDs, livros, shows e produtos do padre? Evangelizar é preciso, é claro, mas o que é mesmo evangelizar? Se evangelizar for montar um projeto milionário, se for ser amigo do governador do Estado, aliado de pessoas da elite social e fazer shows, gravar CDs e ter programas de televisão e rádio, acho que não sei mesmo o que é evangelizar. Se fosse assim, Jesus deveria ter começado a sua missão no palácio de Herodes, na casa de Caifás e Anás e ter um grande acordo com Pôncio Pilatos, ao invés de começar em uma aldeia de pescadores da Galiléia. Acho que tudo isso é importante e deve e pode ser feito, desde que o horizonte último seja Cristo e o seu Reino, desde que isso possa ser multiplicado nas pequenas coisas e exemplos do cotidiano. Num momento em que Igreja reflete a sua eclesiologia (sobre a Igreja) em tentativa de resgate a pequenas comunidades, menores e mais concentradas, mas com mais vigor e postura evangélica, tal postura do Pe. Manzotti vai contra este pleito.

Preocupa-me saber que imagem nós estamos passando de Igreja, preocupa-me saber que Igreja nós estamos formando para nossos filhos e membros e que mensagem de Reino nós estamos passando à sociedade. Foi-se o tempo em que cantávamos na missa ou nos grupos sem nos preocupar de quem era a música ou o CD (disco ou cassete na época), foi-se o tempo de que as músicas religiosas tinham mais teor evangélico e mais coerências sociais (ainda encontramos isso no Pe. Zezinho e Zé Vicente e em alguns outros), foi-se o tempo em que pertencer a determinada comunidade trouxesse ao cristão uma identidade viva e coerente, capaz de ligar a comunidade a sua vida, e assim por diante. Há um crescimento do turismo religioso motivado por fenômenos como o Manzotti, mas um declínio de conteúdo e discernimento da fé. Parece que damos razão a nossos interlocutores críticos da religião como Marx que disse: "A religião é o ópio do povo". Quando a Igreja se faz show, vemos que Marx tinha razão, pois ao invés de libertar ela aliena, pois o aprisionamento religioso faz parte de sua postura ideológica. Lamentável!
É lamentável entender que a Igreja Católica no Brasil hoje passa a ser representada por padres midiáticos como este, onde sua proposta de missão obedece mais aos interesses das gravadoras como "Som Livre" e outras do que a proposta do Evangelho. Esta representação deixa um Jesus de Nazaré pequeno, quase esquecido, diante das luzes que compõem o grande espetáculo. É triste entender e lembrar que no passado estávamos representados (e muito bem!) por pessoas como Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Ivo e Aluisio Lorscheider, Dom Pedro Casaldáliga e tantos outros que deram a sua vida de fé em favor da paz, do amor e da justiça, testemunhas autênticas do Evangelho, e hoje, quem diria, somos representados por pessoas assim... É uma pena que pessoas tão importantes e atuantes pelas causas da Igreja só sejam reconhecidas depois de mortas em martírio, como Irmã Dorothy e tantos outros, esquecidos por nós (Igreja) e pela sociedade. É uma pena imensa que pessoas atuantes em pastorais sociais e em diversos movimentos sejam muitas vezes esquecidos pela Igreja ou punidos por ela (TdL) por defenderem a causa da justiça contra os ricos e poderosos; ricos e poderosos que sustentam esta estrutura piramidal e patrocinam "novas lideranças" como o Pe. Manzotti, que pela postura, servem a seus interesses.
É triste dizer que a Igreja se fez show...

*Cesar Kuzma
Teólogo leigo, católico, professor de Teologia da PUCPR. Assessor em grupos e movimentos eclesiais.

terça-feira, 5 de julho de 2011

A participação da mulher na Igreja exige um novo modelo de Igreja - Pablo Richard

Creio que o problema da participação da mulher na Igreja somente pode ser entendido dentro de uma definição eclesiológica global. Quando Jesus entrou no templo, o definiu como "cova de bandidos". O povo judeu, em grande parte, é de uma religião do templo; e nesse tipo de religião, a participação da mulher é impensável. O ministério "sacerdotal" é algo próprio da religião judaica.
A Igreja cristã não está nessa tradição do templo, nem os homens, nem das mulheres. Devemos realizar uma "des-sacerdotalização" da Igreja; isto é, não pensar a Igreja em termos de Templos e Sacerdotes.
Na tradição cristã de Jesus há "presbíteros", que não é um ministério sacerdotal; mas, homens e mulheres encarregados da fé da comunidade. Se, na Igreja, falamos de "sacerdotes", nem a mulher e nem tampouco o homem deveriam ser ordenados como sacerdotes.
Jesus seguiu a tradição da sinagoga judaica, que não é um lugar de culto, mas de ensinamento. O cristianismo avançou em uma inclusão da mulher como mestra, em igualdade com o homem. Portanto, afirmar "nunca mais uma Igreja sem mulheres" significa também "nunca mais uma igreja de sacerdotes".
O cristianismo não nasceu em um "altar"; mas, em uma "mesa", onde todos e todas participam. mO problema não é a mulher, mas a Igreja. Integrar a mulher no atual modelo de Igreja sacerdotal e hierárquica seria negativo para a mulher.
O ministério fundamental na Igreja hoje é o "Ministério da Palavra", não o "Ministério sacerdotal". Quando a Igreja reduz o ministério aos Bispos e Sacerdotes, a inclusão da mulher é negativa para a mulher. Quando tenhamos uma Igreja de mestres e profetas, a participação da mulher será indispensável.

Texto de Pablo Richard - Teólogo e Biblista chileno
Tradução: Adital

domingo, 26 de junho de 2011

'A ordenação de mulheres é uma idéia nova na Igreja e está crescendo'. Entrevista especial com D. Clemente Isnard


Bispo emérito de Nova Friburgo, Rio de Janeiro, Dom Clemente José Carlos Isnard, nasceu em julho de 1917, ou seja, está comemorando 91 anos de idade este mês. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, muito lúcido, ele fala sobre sua experiência como bispo de Nova Friburgo por 33 anos e afirma que foi nesse período que descobriu "a opção preferencial pelos pobres, que ajudei com meu voto a implantar na Conferência de Puebla".

Dom Clemente foi bispo de Nova Friburgo de 1960 a 1992 e vice-presidente da CNBB de 1979 a 1983, quando Dom Ivo Lorscheiter era presidente e Dom Luciano Mendes de Almeida era secretário. Entre outros cargos, foi presidente do Departamento de Liturgia do CELAM de 1979 a 1982; 2º vice-presidente do CELAM de 1983 a 1987; participante das Conferência de Puebla (1979) e Santo Domingo (1992); e vigário geral da Diocese de Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Dentro da Igreja, sempre se destacou na dimensão litúrgica, tendo, inclusive, participado do Concílio Vaticano II.

Cursou Teologia na Escola Teológica de São Bento, do Rio de Janeiro, Filosofia no Mosteiro de São Bento, e é ainda bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Atualmente, vive em Recife. É autor de, entre outros, Dom Martinho (biografia) (Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1999).

Eis a entrevista:

IHU On-Line – O senhor completará 91 anos de idade neste mês de julho. Que balanço faz de sua vida como religioso e membro da Igreja?

Dom Clemente Isnard – Eu não esperava viver tanto tempo, embora minha mãe tenha chegado a quase 99 anos. Faleceu três dias antes. Tive uma vida resguardada por Deus, em uma família feliz e unida, e com uma babá extraordinária. Fiz os estudos em casa, com professores particulares. Terminei o ginásio com 13 anos. Com essa idade, ingressei na Faculdade de Direito e comecei a comunhão diária. Entrei na Ação Católica e, com 18 anos, ingressei no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Tive bons amigos no período universitário e uma tia em casa que foi providencial. Tive um diretor espiritual extraordinário na pessoa de Dom Martinho Michler. Ordenei-me padre em 1942 e em 1960 fui nomeado bispo, ficando 33 anos e meio como bispo de Nova Friburgo. Na CNBB e no CELAM fui eleito vice-presidente e fui cerca de 20 anos presidente da Comissão de Liturgia. Quando deixei minha Diocese, aos 76 anos, servi quatro anos como vigário geral de Duque de Caxias. Aos 90 anos, resolvi em Recife dedicar o resto dos meus anos à defesa do Movimento Litúrgico e do Concílio Vaticano II. Publiquei três livros. É um balanço muito homogêneo.

IHU On-Line – O que significa para o senhor a experiência de 33 anos de atuação como bispo da Diocese de Nova Friburgo?

Dom Clemente Isnard – Foi uma revelação ter sido bispo por 33 anos em Nova Friburgo. Descobri nesse período a opção preferencial pelos pobres que ajudei com meu voto a implantar na Conferência de Puebla. E como bispo participei do Concílio Vaticano II.

IHU On-Line – O que o motivou a escrever seu livro publicado recentemente Reflexões de um bispo sobre as instituições eclesiásticas atuais? Quais as questões mais candentes que o senhor aborda nestas reflexões?

Dom Clemente Isnard – Ser bispo representou para mim uma conversão. Achei, então, que devia dar um testemunho público acerca das atuais instituições eclesiásticas. São quatro capítulos em que escrevo sobre a nomeação dos bispos, o celibato dos padres, as ordenações femininas e os bispos eméritos. Por intervenção da Nunciatura a “Paulus” desistiu de publicar meu livro. Mas a Editora Olho D’Água de São Paulo se prontificou a fazê-lo, pelo que muito agradeço.

IHU On-Line – Que efeitos o senhor espera que produzam estas reflexões na Igreja católica?

Dom Clemente Isnard – Espero que essas idéias acabem frutificando na hora de Deus (quando Deus quiser) e sendo adotadas. Quando? Não sei.

IHU On-Line – Quais são os principais avanços e as principais dificuldades vividas pela Igreja na caminhada das comunidades após a promulgação da Sacrosanctum Concilium?

Dom Clemente Isnard – Nas Dioceses que adotaram o programa das CEBS (Comunidades Eclesiais de Base) os avanços foram os seguintes: celebração da Palavra de Deus aos domingos com distribuição da comunhão; leigos e leigas como ministros extraordinários do Batismo e testemunhas qualificadas do Matrimonio; difusão da Oração do Povo de Deus; modificação da espiritualidade. As dificuldades também existiram, mas vieram da força da inércia para adaptar o novo.

IHU On-Line – Para que aconteça uma reforma litúrgica em nosso contexto o que seria necessário? Por que a liturgia, que é festa do Povo de Deus, se reduz a um culto de espectadores adultos?

Dom Clemente Isnard – A reforma litúrgica avançou bastante. Para que avance mais, contamos com um trabalho nos seminários para animar a nova geração de padres.

IHU On-Line – Que mudanças e que alternativas se esperam da Igreja hierárquica para sair do que o senhor denuncia como farisaísmo no seu livro?

Dom Clemente Isnard – O farisaísmo está definido no Evangelho. Todo mundo que já leu uma vez o Evangelho sabe. É gostar das aparências, dos sinais exteriores, das roupas suntuosas, dos títulos. Praticando o Evangelho, excluímos o farisaísmo.

IHU On-Line – Uma flexibilização das posições do magistério da Igreja quanto ao celibato dos padres (por exemplo: celibato como escolha pessoal e não como condição) e a ordenação de mulheres não ajudaria a igreja a ser mais viva, mais mística e mais humana?

Dom Clemente Isnard – Essa pergunta encara uma verdade. Por exemplo: a escolha pessoal do celibato e não este transformado em condição, ajudaria a Igreja a ser mais viva e mais humana. Perguntando se ensina.

IHU On-Line – Qual é o maior impedimento para que os padres casados possam exercer seu ministério, sendo que na Igreja primitiva isso era permitido, e para que mulheres possam ser ordenadas? Como isto se justifica?

Dom Clemente Isnard – O casamento dos padres não é impedimento teológico. É impedimento meramente jurídico, dependendo de uma lei que pode ser revogada. Aliás, esse impedimento só existe na Igreja Latina. Na Melquita e em outras Igrejas unidas a Roma, os padres são casados. A ordenação das mulheres depende de outras coisas, inclusive de um documento infeliz de João Paulo II.

IHU On-Line – Na Conferência de Aparecida, a presença de mulheres foi muito limitada, e a questão do ministério das mulheres não esteve na pauta. Que possibilidades o senhor vê para se avançar nesta questão?

Dom Clemente Isnard – A idéia da ordenação sacerdotal de mulheres é nova na Igreja. É idéia que ainda está crescendo. O livro Mantenham as lâmpadas acesas, do cardeal Lorscheider, explica bem esse ponto nas páginas 58 e 59. E termina dizendo: “o assunto fica em aberto. Pode-se ter esperança ainda”!

IHU On-Line – Além do senhor e do cardeal Martini, que outras vozes e movimentos apontam hoje para uma reforma na Igreja?

Dom Clemente Isnard – Eu não saberia apresentar uma enumeração completa, mas há muitas vozes no dia de hoje pedindo uma reforma na Igreja. Pedir a reforma da Igreja não é ser contra, mas a favor. É querer que a Igreja volte aos seus tempos primitivos, à sua proximidade do Evangelho de seu fundador, Jesus Cristo.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Sustentabilidade e cuidado: um caminho a seguir


Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital

Há muitos anos, venho trabalhando sobre a crise de civilização que se abateu perigosamente sobre a humanidade. Não me contentei com a análise estrutural de suas causas, mas, através de inúmeros escritos, tratei de trabalhar positivamente as saídas possíveis em termos de valores e princípios que confiram real sustentatibilidade ao mundo que deverá vir. Ajudou-me muito, minha participação na elaboração da Carta da Terra, a meu ver, um dos documentos mais inspiradores para a presente crise. Esta afirma: "O destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal”.

Dois valores, entre outros, considero axiais, para esse novo começo: a sustentabilidade e o cuidado.

A sustentabilidade, já abordada no artigo anterior, significa o uso racional dos recursos escassos da Terra, sem prejudicar o capital natural, mantido em condições de sua reprodução, em vista ainda ao atendimento das necessidades das gerações futuras que também têm direito a um planeta habitável.

Trata-se de uma diligência que envolve um tipo de economia respeitadora dos limites de cada ecossistema e da própria Terra, de uma sociedade que busca a equidade e a justiça social mundial e de um meio ambiente suficientemente preservado para atender as demandas humanas.

Como se pode inferir, a sustentabilidade alcança a sociedade, a política, a cultura, a arte, a natureza, o planeta e a vida de cada pessoa. Fundamentalmente importa garantir as condições físico-químicas e ecológicas que sustentam a produção e a reprodução da vida e da civilização. O que, na verdade, estamos constatando, com clareza crescente, é que o nosso estilo de vida, hoje mundializado, não possui suficiente sustentabilidade. É demasiado hostil à vida e deixa de fora grande parte da humanidade. Reina uma perversa injustiça social mundial com suas terríveis sequelas, fato geralmente esquecido quando se aborda o tema do aquecimento global.

A outra categoria, tão importante quanto a da sustentabilidade, é o cuidado, sobre o qual temos escrito vários estudos. O cuidado representa uma relação amorosa, respeitosa e não agressiva para com a realidade e por isso não destrutiva. Ela pressupõe que os seres humanos são parte da natureza e membros da comunidade biótica e cósmica com a responsabilidade de protegê-la, regenerá-la e cuidá-la. Mais que uma técnica, o cuidado é uma arte, um paradigma novo de relacionamento para com a natureza, para com a Terra e para com os humanos.

Se a sustentabilidade representa o lado mais objetivo, ambiental, econômico e social da gestão dos bens naturais e de sua distribuição, o cuidado denota mais seu lado subjetivo: as atitudes, os valores éticos e espirituais que acompanham todo esse processo sem os quais a própria sustentabilidade não acontece ou não se garante a médio e longo prazo.

Sustentabilidade e cuidado devem ser assumidos conjuntamente para impedir que a crise se transforme em tragédia e para conferir eficácia às praticas que visam a fundar um novo paradigma de convivência ser-humano-vida-Terra. A crise atual, com as severas ameaças que globalmente pesam sobre todos, coloca uma impostergável indagação filosófica: que tipo de seres somos, ora capazes de depredar a natureza e de por em risco a própria sobrevivência como espécie e ora de cuidar e de responsabilizar-nos pelo futuro comum? Qual, enfim, é nosso lugar na Terra e qual é a nossa missão? Não seria a de sermos os guardiães e os cuidadores dessa herança sagrada que o Universo e Deus nos entregaram que é esse Planeta, vivo, que se autorregula, de cujo útero todos nós nascemos?

É aqui que, novamente, se recorre ao cuidado como uma possível definição operativa e essencial do ser humano. Ele inclui um certo modo de estar-no-mundo-com-os-outros e uma determinada práxis, preservadora da natureza. Não sem razão, uma tradição filosófica que nos vem da antiguidade e que culmina em Heidegger e em Winnicott defina a natureza do ser humano como um ser de cuidado. Sem o cuidado essencial ele não estaria aqui nem o mundo que o rodeia. Sustentabilidade e cuidado, juntos, nos mostram um caminho a seguir.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Festa para quem crê no amor


Marcelo Barros
Monge beneditino e escritor
Adital

Neste ano, no Brasil, enquanto o comércio e a sociedade recordam o "dia dos namorados”, Igrejas cristãs celebram neste próximo domingo, o último dos cinqüenta dias da festa da Páscoa (Pentecostes). Conforme a tradição cristã, neste dia, se espalhou pelo mundo o Espírito Divino. A comemoração do dia dos namorados é uma boa coincidência com esta festa pelo fato de que o Espírito se revelou como energia de amor.

Uma sociedade que reduz as pessoas a peças de produção e de consumo não compreende a linguagem do amor, porque faz as pessoas sobreviverem na competitividade e na luta meramente egoística. Por outro lado, quanto mais uma realidade é preciosa e rara, mais são frágeis as palavras para expressá-la. Hoje em dia, o próprio termo "amor” parece reduzido a emoções rápidas e a experiências passageiras. Poucos crêem no amor como princípio e luz de toda a vida. E se o amor não é reconhecido além dos confins do consumismo e do imediatismo comercial, as pessoas passam a viver meramente em função do dinheiro, da busca ansiosa de poder, ou simplesmente do culto de si mesmo. Em um contexto assim, até os crentes esquecem que Deus é Amor e se manifesta em nós e no universo, nos divinizando à medida que nos torna mais capazes de amar. Martin Buber, grande espiritual judeu, dizia: "Os sentimentos moram no ser humano, mas é a pessoa que mora no seu amor”. Quando se descobre e se vive isso, aí sim o amor é casa e estrada de vida, enraizamento e transcendência. É a única energia que conduz a vida à sua plenitude.

Camus dizia: "Não ser amado é uma falta de sorte, mas não amar chega a ser uma tragédia imensa”.

Conforme a Bíblia, toda pessoa que ama vive uma experiência divina porque Deus é fonte de todo amor humano. Mesmo no meio das imperfeições e buscas afetivas, o Amor divino conduz a pessoa a formas de amar mais profundas e generosas. Desde o começo da Bíblia, Deus prometeu estabelecer uma presença no mundo e guiar as pessoas que se abrissem à sua inspiração. Revelou-se presente na criação fazendo de cada criatura viva um sinal do seu amor e de sua bênção para o universo. Manifestou-se como fonte de bênção no canto dos pássaros, no vento que faz sussurrar as palmeiras, no riso das crianças e em cada pessoa aberta ao Espírito. Em tempos mais antigos, deu vários sinais de que queria fazer uma aliança de amor com a humanidade e com todos os seres vivos do universo. Revelou-se plenamente presente na pessoa de Jesus de Nazaré, testemunha da ternura divina para com toda a humanidade. De acordo com a fé cristã, a partir da ressurreição de Jesus, o Espírito Divino foi dado a todas as criaturas. Um cântico de Pentecostes afirma: "Ele enche o universo, abarca toda a sabedoria e abraça todo ser que existe”. O texto mais conhecido sobre Pentecostes (At 2) diz que, quando o Espírito vem dá às pessoas que o recebem a capacidade de se comunicar com as mais diversas culturas e criar uma unidade onde antes só havia divisão e discórdia. Hoje, o Espírito Divino guia comunidades e pessoas de todas as religiões e mesmo sem nenhuma pertença institucional a se unirem em função da paz do mundo, da justiça e da defesa da natureza. Um documento do século II de nossa era dizia: "Se queres encontrar o Espírito, podes descobri-lo presente e atuante no murmúrio do vento, no pulsar de toda a natureza e até quando levantas uma pedra”. O Espírito nos confirma sempre que cada ser vivo é sinal da bênção original do amor divino que fecunda o universo. Na Idade Média, Ibn Arabi, místico islamita, afirmava: "Meu coração é como um pasto para gazelas. Acolhe todas as crenças. É a tábua da lei judaica e, ao mesmo tempo, o Corão sagrado dos islamitas. Meu coração se faz Igreja para os cristãos e tenda aberta aos que buscam. Creio acima de tudo na religião do amor”.

domingo, 22 de maio de 2011

Revista Época Globo.com/Brasil Notícias, 20-04-2010 Santa Ignorância


Depois de controlar a queda nas ordenações, a Igreja Católica no Brasil enfrenta outro problema: o baixo nível cultural dos novos padres

Diante das câmeras de televisão que transmitem suas palavras para milhões de fiéis, o padre Marcelo Rossi recorre vez por outra a duas citações que mantém arquivadas em seu acervo pessoal. "Quem ama canta e quem canta reza duas vezes" é uma delas. "No coração da igreja eu quero ser como uma criança" é a outra. Ambas são de autoria de Santo Agostinho, filósofo brilhante que lançou luzes sobre a Igreja Católica em plena Idade Média. Mas, despejadas aleatoriamente por padre Marcelo, ganham a força de uma coreografia inspirada em bichinhos. A performance rica em carisma e pobre em conteúdo do padre superstar é sempre vista de perto por seu mentor, dom frei Fernando Antônio Figueiredo, de 62 anos, bispo de Santo Amaro, em São Paulo. Um dos maiores intelectuais da Igreja brasileira, ele é doutor em teologia patrística, praticada nos primeiros séculos do cristianismo pelo próprio Santo Agostinho. A cada vez que sobem juntos ao altar, pupilo e mestre transformam-se no melhor exemplo do mais recente espinho da Igreja Católica do país: o nível cultural dos novos padres e freiras anda muito semelhante ao de boa parte dos recém-formados pelas universidades brasileiras — cada vez mais fraco.
Apesar de ser acompanhado de perto por dom Fernando, padre Marcelo é autor de sermões inconsistentes. "Ele foi um aluno mediano, para não dizer medíocre. Hoje tem o poder de fazer milhões de pessoas dançar. Mas suas homilias são fraquíssimas", diz o padre Benedito Ferraro, da PUC de Campinas, que foi professor de padre Rossi em São Paulo. Trata-se, na verdade, de uma deficiência comum à nova geração do clero.
Como os clérigos não fazem o provão do MEC, a melhor maneira de aferir a queda do nível cultural dos que se dedicam à vida religiosa é mesmo acompanhá-los nas missas e escolas. Observadores graduados não têm gostado do que vêem. "Alguns novos padres estão muito mal preparados. Já ouvi barbaridades, erros na construção do discurso e na interpretação das leituras bíblicas", reclama o teólogo salesiano João Luís Gonçalves. "A queda do nível dos padres é galopante", completa Luiz Roberto Benedetti, professor da PUC de Campinas.
A pesquisa que faz a melhor radiografia da indigência cultural dos novos padres é de autoria do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris). O levantamento mostra que a maioria dos religiosos do país tem a mesma origem de sempre: cresceu na zona rural e pertence a famílias pobres. Seminários e conventos — assim como a carreira militar — sempre foram destino para filhos de classes menos favorecidas. Por isso, os dados do Ceris só fazem sentido se cruzados com a decadência do ensino público e das escolas de teologia e filosofia. Quando se apresentam para a vida religiosa, os candidatos já chegam com sérias lacunas na formação. E boa parte dos seminários se revela incapaz de reeducá-los. O somatório não é dos mais animadores para o futuro da instituição. "Os novos padres são mais fracos intelectualmente. A Igreja tem um conteúdo doutrinário a ser transmitido. Se eles não forem convincentes, ficará difícil manter antigos fiéis ou arrebanhar novos", analisa Sílvia Fernandes, socióloga do Ceris.
Até três décadas atrás, os candidatos entravam para os "Seminários Menores" ainda na infância e faziam o equivalente aos antigos ginásio e colegial sob a orientação da Igreja. Depois, iam para o Maior, correspondente ao terceiro grau, onde enfrentavam uma média de sete anos de estudos. Só então eram ordenados. Esse sistema de preparação fechado começou a entrar em desuso por conta das mudanças determinadas pelo Concílio Vaticano II, que desenhou a Igreja moderna. Também contribuiu para a queda desse tipo de educação um fenômeno iniciado na Europa. Os casais começaram a ter menos filhos e preferiam mantê-los em casa até os 18 anos. No Brasil, houve um ingrediente a mais: o crescimento da Teologia da Libertação, que desaprova os Seminários Menores e privilegia o contato do candidato com a comunidade.

“Sou órfão de pai, tenho seis irmãos e sempre estudei em escolas públicas. No início tive dificuldades com os estudos no seminário. Mas consegui superá-las” -- Mário Barbosa Filho, estudante do Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio.

Assim como ocorre com as faculdades privadas, os seminários multiplicam-se pelo país afora. Hoje, cada diocese quer ter o seu. Torna-se mais difícil, então, controlar o nível de ensino. "Já fui convidado a dar cursos em outros Estados porque os alunos não agüentavam padres e bispos que ensinavam matérias que não dominavam", conta o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, professor da PUC de São Paulo. Os jovens que escapam das dioceses e entram em uma ordem ressentem-se menos disso. Roque Luiz Sibione, de 30 anos, poderia ser exemplo da pesquisa do Ceris. Veio da zona rural de Urupês, no interior paulista, e é filho de lavradores. Mas entrou para a ordem dos salesianos aos 23 anos e hoje tem mestrado em educação.
As instituições mais rígidas tentam manter o nível de ensino a duras penas. Antes, elas costumavam ter entre os alunos integrantes de uma elite que destinava pelo menos um dos filhos para uma respeitável carreira religiosa — e em um movimento circular também era conferido status à instituição. Hoje, esses seminários se limitam a transferir prestígio aos novos alunos. Roberto Luiz Oliveira Almeida, de 23 anos, está no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio de Janeiro, desde 1999. É de Santa Cruz, bairro pobre na Zona Oeste da cidade. Quando a vocação despertou, era vendedor de uma fábrica de chocolates. "Eu pensava em seguir carreira militar", lembra. "Nos estudos tive surpresas, mas não cheguei a levar um choque."
"Os meninos que chegam com péssima bagagem cultural têm acompanhamento intensivo", diz dom Karl Joseph Romer, bispo auxiliar do Rio, há 26 anos responsável pelas vocações. Os seminários cariocas contam com laboratório de idiomas, bibliotecas e bons professores. Cada aluno custa R$ 800 mensais à Arquidiocese do Rio. "Eu sempre digo a eles: empenhem-se e reconheçam o que a Igreja fez por vocês, pois no fim de oito anos de seminário seria possível construir uma igreja por aluno", diz o padre João Geraldo Bellocchio, vice-reitor do Seminário Arquidiocesano de São José. Mário Antônio Barbosa Filho, de 27 anos — morador do Morro do Salgueiro, uma das mais violentas favelas cariocas, órfão de pai e com seis irmãos —, segue à risca o conselho do professor. Está há três anos no seminário e integra a parcela dos que recebem atenção redobrada. "Tive dificuldades no início", reconhece.
Em São Paulo, o nível dos candidatos é tão preocupante que a arquidiocese implantou há quatro anos um intensivo chamado propedêutica. "Eles estudam a fé católica e a catequese, mas também preenchem lacunas", conta dom Gil Antônio Moreira, bispo auxiliar. Dom Gil imagina que em cinco anos a média de ordenações em São Paulo duplique.
Por ironia, os bispos esperam que algumas novas vocações sejam despertadas pelo sucesso de Marcelo Rossi, que em seus tempos de seminário tinha notas apenas regulares. A inspiração pode não ser tão ruim assim. No debate sobre a importância do nível cultural dos novos clérigos, há sempre quem lembre de São Francisco de Assis, para quem discussões filosófico-teológicas não tinham relação com seguir os ensinamentos de Jesus Cristo. Além disso, o protetor dos párocos foi um francês nascido no fim do século XVIII que comeu o pão que o diabo amassou para tornar-se padre. Aluno limitado, São João Maria Batista Vianney chegou a ser expulso do seminário. Foi reconduzido por sua bondade e se tornou um dos religiosos mais reverenciados da história da Igreja. Resta saber se todo novo padre no Brasil vem abastecido com essa santidade.

domingo, 15 de maio de 2011

O fim do mundo, de novo


"Se existe um risco imediato de destruição, ele não vem do céu, de cometas ou de asteroides assassinos, mas de nossas próprias mãos", escreve Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-05-2011.

Eis o artigo.

Parece que o mundo vai acabar.

De novo. A data definida pelo americano Harold Camping, um fundamentalista cristão de 89 anos, é resultado de cálculos e numerologia obscura, usando eventos bíblicos e catástrofes naturais. Camping previu o Apocalipse antes, em 1994. Mas desta vez está certo, diz ele.

Recentemente, cerca de 50 pessoas juntaram-se a Camping em Washington para espalhar a notícia. Entre eles, um oficial do Departamento de Segurança Interna que tirou férias especialmente para isso."Tenho de voltar no dia 23,mas não será preciso, pois no dia 21 sumirei", disse ao "Washington Post".

Nesse meio-tempo, um ateu está se oferecendo para tomar conta dos animais domésticos que ficarem para trás, já que eles não vão para o céu. Já tem mais de mil clientes.

Ironicamente, os céus estão oferecendo uma série de espetáculos neste mês, com vários alinhamentos planetários visíveis no hemisfério Sul. Como em tempos imemoriais, esses alinhamentos costumam ser interpretados como sinais apocalípticos. Em 11 de maio, Mercúrio, Vênus e Júpiter convergiram numa região com apenas 2,05 graus de diâmetro.

Como referência, a Lua cheia ocupa meio grau. Portanto, os planetas se juntaram no equivalente a quatro luas cheias, uma visão belíssima. No dia 21, o dia da previsão de Camping, Mercúrio, Vênus e Marte estarão numa região com apenas 2,13 graus de diâmetro.

Em 1186, os cinco planetas conhecidos então (até Saturno) alinharam-se nos céus, causando pânico por toda a Europa. Inúmeros outros fenômenos celestes, de eclipses a cometas e chuvas de meteoros, fizeram o mesmo no decorrer da história.

E continuam assustando as pessoas desnecessariamente. Os céus foram sem previstos como sagrados.

Portanto, fenômenos inesperados e misteriosos eram interpretados como mensagens de deuses prontos para punir os pecadores. Conforme discuto em meu livro "O Fim da Terra e do Céu", essa tradição apocalíptica não se reserva apenas a fanáticos religiosos. Cientistas também participam ocasionalmente, se bem que sob a luz de argumentos racionais e testáveis.

De fato, é importante considerarmos o risco de um asteroide ou de um cometa com mais de um quilômetro de diâmetro colidir com a Terra (possível, mas realmente muito improvável), ou de o Sol explodir (isso ocorrerá, em aproximadamente 5 bilhões de anos), ou de o próprio Universo ter um fim (terá, continuando sua expansão indefinidamente, enquanto as estrelas morrerão e se apagarão, se bem que existem outras alternativas).

Começos e fins são parte integral do discurso científico desde o nascimento da ciência moderna no século XVII. Newton previu o fim do mundo para 2060. Halley, famoso pelo cometa homônimo, sugeriu que o Dilúvio foi causado pelo impacto de um cometa contra a Terra.

Felizmente, podemos afirmar com confiança absoluta que alinhamentos planetários não trarão o Apocalipse e que o Sol, mesmo que volta e meia lance enormes bólidos de matéria em nossa direção, continuará fundindo hidrogênio em hélio de forma relativamente pacata por muito tempo. Se existe ameaça mais imediata, ela não vem dos céus, mas das nossas próprias mãos.