sábado, 23 de abril de 2011

Sobre Madalena e aquela madrugada - Maria Soave


A cada entardecer, o seu olhar mergulhava na grande festa das cores do céu. Os seus olhos profundos e escuros fitavam longe, à procura de algo. Devagarinho, dava uma volta sobre si mesma olhando lá no alto, num céu cada vez mais escuro, visitado pela primeira estrela. Um sorriso largo, bonito como as montanhas do Líbano carregadas de neve, enfeitava então o seu rosto escuro, da cor das árvores de oliveiras. Finalmente, a tinha encontrado, tímida amiga da noite, meiga presença no céu negro, fecundadora da terra, do mar e dos corpos das mulheres... lua.
Maria, assim ela se chamava. Tinha nascido e sempre vivido na pequena cidade de Mágdala, pedaço de terra da Galiléia banhado por um mar de água doce, da cor da prata e rico de peixes. Maria de Mágdala ou Madalena, assim as pessoas amigas a chamavam. Não era fácil a vida em Mágdala e em todas as pequenas cidades da Galiléia. Fazia muitos e muitos anos que reis estrangeiros com exércitos, armas e guerras tinham violentamente tomado posse daquela terra de pequenos agricultores. Antes, foram os Assírios, depois os Babilônios, os Persas, os Gregos e, agora, o exército mais violento e poderoso, vindo do grande mar, vindo de Roma. Lá na Galiléia, todas as pessoas eram obrigadas a trabalhar duro para pagar os altos impostos que o imperador romano cobrava. Muito trabalho, muito suor para pagar o tributo ao poder de Roma e ao templo de Jerusalém.

Nas noites de luar a dor parecia não ser tão forte

Grande parte das pessoas perdeu as pequenas propriedades de terra por causa do tributo romano e do poder do templo. Grande parte dos pequenos agricultores e pastores foi deixando a terra e migrando para as periferias ao redor da cidade do poder romano; Séforis antes e, depois, Tiberíades. Grande número de homens e mulheres sem-terra viviam de biscates nas periferias da grande cidade.
Periferias chamadas Mágdala, Caná, Nazaré... Gente empobrecida pela violência e pelo tributo romano, obrigada a viver sem terra e de biscates: ferreiros, parteiras, carpinteiros, prostitutas, padeiros...
Maria Madalena, a cada entardecer, devagarinho, dava uma volta sobre si mesma mergulhando lá no alto, num céu cada vez mais escuro, visitado pela primeira estrela. Um sorriso largo enfeitava o seu rosto quando a encontrava. Lá estava a lua, meiga e tímida senhora da noite.
Madalena esperava e escutava durante sete noites o crescer da tímida senhora da escuridão e, nas noites de lua bochechuda, amava abrigar-se debaixo de seus raios prateados. Nas noites de luar em Maria de Mágdala a dor parecia não ser tão forte. A ferida da invasão romana, da injustiça, da escravidão, da fome, da exclusão era como que acariciada pelos raios prateados e a dor era consolada pela memória viva que deixava espaço ao desejo de um outro tempo de lua cheia. Tempo da saída de um povo empobrecido da escravidão do Egito; tempo da presença do Deus libertador; tempo de deserto e terra prometida; tempo de queda dos poderosos e de vitórias dos pobres; tempo de cantos das profetisas Miriam e Deborah; tempo de Páscoa! O corpo de Madalena, fértil e aberto ao amor em tempo de lua cheia, se deixava acariciar pela memória da Páscoa da libertação que aqueles raios mansos e prateados traziam durante a noite.

Jesus conhecia aquele olhar

Jesus conhecia muito bem aqueles olhos profundos e escuros. Os olhos de Maria Madalena cantavam o sonho dos pais e das mães de Israel: justiça, paz, igualdade, libertação, um Messias, resgatador dos pobres da terra. Ao entardecer ao redor do fogo, Jesus, as discípulas e os discípulos preparavam alguns peixes assados; pão e peixe, comida de gente pobre. Jesus se aproximava de Maria e lhe dizia: “Hoje passei pela beira do mar, sei que ela vai aparecer. Falei para ela, mulher. Disse para ela te esperar porque logo tu irás conversar com ela. Falei para a lua aparecer bem bonita nesta noite para ti”. Comendo pão e peixe junto com “muitas mulheres que vinham seguindo Jesus desde a Galiléia” (Mt 27,55), naquela refeição com as discípulas e discípulos de Jesus, Maria fazia memória da Páscoa de libertação do povo, e Jesus sorria, alegre, olhando para cada discípula e discípulo no seguimento e na prática do Reino de Deus. Pequena comunidade de iguais a serviço dos pobres.
Mas aquela noite Maria de Mágdala chegou a odiar a chegada da lua cheia. O seu corpo sempre fértil e aberto para o amor chegou a sangrar antecipadamente em tempo de lua cheia. As lágrimas e os gritos tinham o cheiro e o sabor do sangue. De longe Maria e as outras discípulas olhavam para Jesus crucificado.
“Como podia suceder tudo isso? Como podia acontecer a morte do Mestre em tempo de lua cheia? Maldita lua enganadora que não trazia vida e libertação, conforme os patriarcas e as matriarcas tinham anunciado desde os tempos antigos, mas dor, violência, cruz e morte!”
Com o coração em pedaços, o corpo sangrando e o rosto devastado por tanta dor, “Maria de Mágdala e a outra Maria estavam sentadas em frente ao túmulo de Jesus” (Mt 27,61).

A vida e o sonho voltavam a ser vivos

Tudo tinha acabado. O sonho do movimento de Jesus, de comunidades de iguais, de um mundo solidário e de justiça tinha se estraçalhado em milhares de pedaços, como um jarro de barro caído do alto muro do templo. Pela primeira vez Madalena vestiu-se totalmente de preto para que todo o seu ser falasse da sua dor e, pela primeira noite, não foi conversar e se deixar balançar na rede de raios prateados da lua cheia. Era, aquela, a primeira lua cheia da primavera, a mesma que nos tempos antigos tinha trazido vida e libertação para o povo de Israel. Maria ficou em casa, aquela noite, os olhos abertos, secos por tantas lágrimas choradas, fixos e tristes olhando a escuridão e o vazio. Vazio de vida e de sonho.
“O dia seguinte, o começo do primeiro dia da semana, Maria de Madalena e a outra Maria foram ver o túmulo de Jesus” (Mt 28,1). Madalena sabia que iria encontrar só uma grande pedra na sua frente. Lá no túmulo estava só o corpo de um morto, Jesus não iria mais voltar... Mas Maria de Mágdala precisava estar perto do Mestre... Túmulo... vazio. Pedra... fora do lugar. Luz.... anjos. Morte. Derrotada... Ressurreição! “Jesus não está entre os mortos! Ele ressuscitou e nos espera lá em casa, lá no meio dos empobrecidos, lá na Galiléia!” (Mt 28,7).
Maria Madalena apóstola, porque testemunha da Ressurreição de Jesus, correu com a outra Maria, para dar a boa notícia aos discípulos (Mt 28,8).
Madalena corria, o coração batia forte, o suor molhava o seu rosto, a alegria tomava conta do corpo da apóstola. A vida e o sonho voltavam a ser vivos no coração de Madalena.
Parou um instante para retomar o fôlego. Os seus olhos profundos e escuros fitavam longe à procura de algo. Devagarinho deu uma volta sobre si mesma, deixando cair o manto preto que a cobria. Olhava e, no alto, mergulhava num céu cada vez mais claro onde ainda só brilhava uma estrela.
Um sorriso largo e uma gargalhada cristalina romperam o silêncio daquela madrugada. Finalmente, a tinha encontrado, tímida amiga do dia. Meiga presença fecundadora da terra, do mar, do corpo das mulheres... sinal de vida, libertação, ressurreição... Lua cheia da Páscoa do Senhor Jesus... “Alegrai-vos, mulheres e homens. Não tenhais medo. O Senhor ressuscitou! Aleluia!” (Mt 28,11).

terça-feira, 5 de abril de 2011

O futuro do Cristianismo

J. B. Libanio
Padre jesuíta, escritor e teólogo. Ensina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte.


O Cristianismo retorna, de certo modo, a seus inícios históricos. Embora Jesus tenha sido camponês com toques de artesão de região rural, o Cristianismo, que surgiu depois de sua morte, assumiu caráter urbano. Difundiu-se principalmente nas cidades helenizadas. Depois da queda do Império romano e da conversão dos bárbaros, ruralizou-se e se configurou em esquemas institucionais típicos do mundo do campo. Nas últimas décadas, acelerou-se o processo de secularização e urbanização. O Cristianismo do futuro sobreviverá se responder às exigências e demandas da sociedade urbana e secular, perdendo a função hegemônica de configurar a sociedade a partir do próprio universo religioso. Termos que se imporão como desafio: declínio da força social da religião, secularização do horizonte religioso, horizontalização dos valores transcendentes, autonomia das realidades terrestres, privatização religiosa em face do Estado, dessacralização. Nada impedirá surtos opostos conservadores, mas sem perspectiva de marcar o porvir.

O Cristianismo do futuro sofrerá de crescentes incertezas. Perderá a homogeneidade dos dogmas e se esforçará por interpretá-los nos diversos contextos culturais, geográficos, étnicos, religiosos. Ele se entenderá histórico, contextual, plural. Assistirá ao ocaso da cultura ocidental, cartesianamente racional, capitalista neoliberal, burocrática, centrada no varão conquistador, de raça branca e de religião católica romana hegemônica para ver surgir novo paradigma com valorização da ecologia, da mulher, da diversidade racial, do diálogo intercultural e inter-religioso e da relação entre as pessoas e povos.

O futuro do Cristianismo já não dependerá do imaginário religioso que teceu ao longo dos séculos no Ocidente, mas antes da vitalidade interna que tem de inculturar-se em outros horizontes culturais. Tal processo não se fará sem muito sofrimento. A expressão católica ocidental se identificou de tal maneira com a fé que qualquer divergência séria cultural se considera heresia. O Ocidente se imbuiu abusivamente da consciência de possuir a única verdade católica. O futuro do Cristianismo aponta noutra direção: diálogo, pluralidade, liberdade criativa.

As linguagens sofrem duplo movimento oposto. De um lado, diversificam até o extremo. E, de outro, cria-se enorme homogeneidade pela via da globalização midiática. E o Cristianismo se percebe dilacerado entre as duas vertentes e corre o risco de rigidez que não aceita a linguagem globalizada nem a pluralidade. Isola-se, então, em pequenas ilhas culturais religiosas.

O ponto de contacto entre a linguagem da fé e o público passa pela experiência que se desgarrou de parâmetros rígidos e uniformes. O futuro desafia o Cristianismo para que ele se aproxime e converse com os excluídos, com o mundo da intimidade das pessoas, com as ciências e tecnologias de ponta, com as novas instituições sociais e políticas em gestação sob o nome de ONG, Fórum Social Mundial e outras. O Cristianismo perpetuar-se-á, não pela força da imposição, mas pelo diálogo e pela busca comum da verdade e do bem em vista de convivência humana e civilizada.

[De J.B.Libanio, leia também "Qual o futuro do cristianismo?”, e não deixe de visitar o site: www.jblibanio.com.br].