terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Teólogo: um ser quase impossível


Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital

Muitos estranham o fato de que, sendo teólogo e filósofo de formação, me meta em assuntos, alheios a estas disciplinas como a ecologia, a política, o aquecimento global e outros.

Eu sempre respondo: faço, sim, teologia pura, mas me ocupo também de outros temas exatamente porque sou teólogo. A tarefa do teólogo, já ensinava o maior deles, Tomás de Aquino, na primeira questão da Suma Teológica é: estudar Deus e sua revelação e, em seguida, todas as demais coisas "à luz de Deus” (sub ratione Dei), pois Ele é o princípio e o fim de tudo.

Portanto, cabe à teologia ocupar-se também de outras coisas que não Deus, desde que se faça "à luz de Deus”. Falar de Deus e ainda das coisas é uma tarefa quase irrealizável. A primeira: como falar de Deus se Ele não cabe em nenhum dicionário? A segunda, como refletir sobre todas as demais coisas, se os saberes sobre elas são tantos que ninguém individualmente pode dominá-los? Logicamente, não se trata de falar de economia com um economista ou de política como um político. Mas falar de tais matérias na perspectiva de Deus, o que pressupõe conhecer previamente estas realidades de forma critica e não ingênua, respeitando sua autonomia e acolhendo seus resultados mais seguros. Somente depois deste árduo labor, pode o teólogo se perguntar como elas ficam quando confrontadas com Deus? Como se encaixam numa visão mais transcendente da vida e da história?

Fazer teologia não é uma tarefa como qualquer outra como ver um filme ou ir ao teatro. É coisa seríssima, pois se trabalha com a categoria”Deus” que não é um objeto tangível como todos os demais. Por isso, é destituída de qualquer sentido, a busca da partícula "Deus” nos confins da matéria e no interior do "Campo Higgs”. Isso suporia que Deus seria parte do mundo. Desse Deus eu sou ateu. Ele seria um pedaço do mundo e não Deus. Faço minhas as palavras de um sutil teólogo franciscano, Duns Scotus (+1308) que escreveu: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. Quer dizer, Deus não é da ordem das coisas que podem ser encontradas e descritas. É a Precondição e o Suporte para que estas coisas existam. Sem Ele as coisas teriam ficado no nada ou voltariam ao nada. Esta é a natureza de Deus: não ser coisa, mas a Origem das coisas.

Aplico a Deus como Origem aquilo que os orientais aplicam à força que permite pensar: "a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. A Origem das coisas não pode ser coisa.

Como se depreende, é muito complicado fazer teologia. Henri Lacordaire (+1861), o grande orador francês, disse com razão: "O doutor católico é um homem quase impossível: pois tem de conhecer todo o depósito da fé e os atos do Papado e ainda o que São Paulo chama de os ‘elementos do mundo’, isto é tudo e tudo”. Lembremos o que asseverou René Descartes (+1650) no Discurso do Método, base do saber moderno: "se eu quisesse fazer teologia, era preciso ser mais que um homem”. E Erasmo de Roterdam (+1536), o grande sábio dos tempos da Reforma, observava: "existe algo de sobrehumano na profissão do teólogo”. Não nos admira que Martin Heidegger tenha dito que uma filosofia que não se confrontou com as questões da teologia, não chegou plenamente ainda a si mesma. Refiro isso não como automagnificacão da teologia, mas como confissão de que sua tarefa é quase impraticável, coisa que sinto dia a dia.

Logicamente, há uma teologia que não merece este nome porque é preguiçosa e renuncia a pensar Deus. Apenas pensa o que os outros pensaram ou o que o que disseram os Papas.

Meu sentimento do mundo me diz que hoje a teologia enquanto teologia tem que proclamar aos gritos: temos que preservar a natureza e harmonizarmo-nos com o universo, porque eles são o grande livro que Deus nos entregou. Lá se encontra o que Ele nos quer dizer. Porque desaprendemos a ler este livro, nos deu outro, as Escrituras, cristãs e de outros povos, para que reaprendêssemos a ler o livro da natureza. Hoje ela está sendo devastada. E com isso destruímos nosso acesso à revelação de Deus. Temos, pois, que falar da natureza e do mundo à luz de Deus e da razão. Sem a natureza e o mundo preservados, os livros sagrados perderiam seu significado que é reensinarmos a ler a natureza e o mundo. O discurso teológico tem, pois, o seu lugar junto com os demais discursos.

[Leonardo e Clodovis Boff escreveram Como fazer teologia da libertação Vozes 2010].

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cuidar da Natureza

“O Senhor Deus pôs o ser humano no jardim...
para o cultivar e preservar”
(Gn 2.15)).

“As partes do corpo que achamos menos honrosas
são as que tratamos com mais honra.
E as partes que parecem ser feias recebem um cuidado especial” (1Cor 12.22).

“O sentido comunitário da vida é a expressão
mais entranhável do sentido comum”
(Eduardo Galeano).

“A gente protege o que a gente ama”, declarou recentemente o filho de Jacques Cousteau em uma conferência ambiental no Brasil. Podemos concluir: se alguém não cuida, é porque não ama. Ou seja, descuidar da natureza e de si mesmo não é apenas evidência de desnaturação, mas também de falta de amor à vida e a si próprio. Por exemplo, quem sorve constantemente as 4.720 substâncias contidas no cigarro, muitas delas cancerígenas, maltratando assim sua “casa corporal”, dificilmente será consistente na defesa da “casa comum”, até porque não se importa com os fumantes passivos em seu redor nem com a condição de semi-escravidão dos fumicultores. Quem se conforma com a “dose diária inaceitável” de agrotóxicos no leite materno e no alimento em geral não se interessará em desmascarar o agronegócio como insustentável em termos ambientais (devastação), sociais (trabalho escravo) e econômicos (rendição ao sistema bancário e às multinacionais controladoras das sementes e da maléfica transgenia). Logo, a tolerância com as “pequenas” incoerências pessoais é uma das causas da pouca eficácia do cuidado pela natureza em nosso sistema de “crescimento” econômico. Pois, contraditoriamente ninguém se opõe à preservação ambiental. Afinal, trata-se de um empreendimento ganha-ganha para todos, hoje e no futuro. Contudo, que a promovam os outros e que ela não tolha nosso modo de vida e modo de produção.

Diante do muito que está sendo feito e dos poucos avanços na preservação ambiental, Jean-Michel Costeau acrescentou que, quando olha para uma criança, alvo do amor humano e carente de proteção, consegue vencer o desânimo e renovar o compromisso de lutar pela preservação do planeta.

Essa motivação “secular” é desenhada de duas maneiras nos textos bíblicos. A primeira, mais conhecida, é a afirmação de que devemos preservar a criação de Deus porque somos parte dela e incumbidos de seu cuidado: ser criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26) significa ser o estandarte do domínio de Deus sobre a terra, representando, anunciando e executando a vontade benfazeja dele. Ao Senhor Deus pertencem o mundo e tudo o que nele existe, inclusive seus habitantes (Sl 24.1). Além disso, a informação de que Deus considerou muito boa toda a sua criação (Gn 1.31) faz lembrar que, na concepção hebraica, “bom” é o que está ligado a Deus, ainda que seja “imperfeito”, ao passo que a concepção grega de “perfeição” do cosmos nos leva à crise diante das deficiências físicas. Qualquer ser humano, por mais falho que seja, pode ser útil na mão de Deus. Embora a criação toda esteja gemendo, e nós com ela, o Espírito de Deus geme com ela e conosco (Ro 8.22-26). Não é bom estar separado de Deus nessa empreitada de cultivar e preservar.

A segunda base, menos lembrada, do empenho em favor da preservação não vem da teologia da criação, mas da experiência da libertação. É a única que transmite a realidade do amor, sempre nas três vias: amor de Deus ao ser humano e à criação, amor do ser humano a Deus e amor do ser humano ao semelhante e à natureza. Trata-se da interpelação direta de Deus que intervém na história, transformando a criatura humana em sua parceira de diálogo e ação, e revestindo-a de uma dignidade inaudita (cf. Sl 8.4s). “Eu sou o Senhor, que te arranquei do contexto da escravidão, por isso...” (Ex 20.1). É esse amor divino aos e nos humanos que estremece diante de abusos contra seres humanos indefesos como as crianças, que se compadece da frágil biodiversidade e que se deslumbra com a tenacidade da vida. Que lamenta perplexa e criticamente a mercantilização dos patrimônios universais da humanidade: “Nossa água, por dinheiro a bebemos, por preço vem a lenha” (Lm 5.4). E que levanta a voz, defendendo os direitos humanos, quando escravos libertos submetem outros à corvéia: edificar um templo a esse Deus libertador mediante trabalhos forçados? (cf. 1Rs 9,15).

A intensidade da experiência de Deus na história é indutora da crítica social: quem vê apenas o problema e não o sistema, não vê o sistema. E é indutora da luta em favor de soluções sócio-ambientais dignas e conscientes: não se resolve a questão ambiental à custa da social, nem a social à custa da ambiental. O Social e ambiental estão interligados. Quem não respeita a terra e o ser humano sobre a terra tampouco respeita o meio-ambiente. Assim, desumaniza a si próprio. Portanto, cuidamos do jardim por causa de nós mesmos, de nossa coerência conosco mesmos e com nossa posição de interlocutores/as amados e amadas de Deus.

A resposta humana a esse amor divino é louvor e reconhecimento: sim, “os céus são os céus do Senhor, mas a terra, deu-a ele aos filhos dos homens” (Sl 116.15). É também ser pró-ativo, articulando e difundindo modos de vida e de produção com tecnologias sociais e ambientais que respeitem o meio-ambiente e a abundância de vida que ele nos propicia, a exemplo da agroecologia, das cisternas no semi-árido, dos projetos comunitários de economia solidária. Mas essa resposta é, sobretudo, defender os empobrecidos e fragilizados, em consonância com o agir de Jesus. Porque esmagar a cana quebrada e torcer o pavio que fumega não é somente desumano, mas primordialmente antidivino (cf. Is 42.3; Mt 12.20).

Este artigo foi publicado na Revista ULTIMAT n. 320
(set/out-2009) – Seção “Meio Ambiente e Fé Cristã”.

Pastor Werner Fuchs
w.fuchs@uol.com.br

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Meu Deus, me dê a coragem - Clarice Lispector

Meu Deus, me dê a coragemde viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.
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