domingo, 22 de maio de 2011

Revista Época Globo.com/Brasil Notícias, 20-04-2010 Santa Ignorância


Depois de controlar a queda nas ordenações, a Igreja Católica no Brasil enfrenta outro problema: o baixo nível cultural dos novos padres

Diante das câmeras de televisão que transmitem suas palavras para milhões de fiéis, o padre Marcelo Rossi recorre vez por outra a duas citações que mantém arquivadas em seu acervo pessoal. "Quem ama canta e quem canta reza duas vezes" é uma delas. "No coração da igreja eu quero ser como uma criança" é a outra. Ambas são de autoria de Santo Agostinho, filósofo brilhante que lançou luzes sobre a Igreja Católica em plena Idade Média. Mas, despejadas aleatoriamente por padre Marcelo, ganham a força de uma coreografia inspirada em bichinhos. A performance rica em carisma e pobre em conteúdo do padre superstar é sempre vista de perto por seu mentor, dom frei Fernando Antônio Figueiredo, de 62 anos, bispo de Santo Amaro, em São Paulo. Um dos maiores intelectuais da Igreja brasileira, ele é doutor em teologia patrística, praticada nos primeiros séculos do cristianismo pelo próprio Santo Agostinho. A cada vez que sobem juntos ao altar, pupilo e mestre transformam-se no melhor exemplo do mais recente espinho da Igreja Católica do país: o nível cultural dos novos padres e freiras anda muito semelhante ao de boa parte dos recém-formados pelas universidades brasileiras — cada vez mais fraco.
Apesar de ser acompanhado de perto por dom Fernando, padre Marcelo é autor de sermões inconsistentes. "Ele foi um aluno mediano, para não dizer medíocre. Hoje tem o poder de fazer milhões de pessoas dançar. Mas suas homilias são fraquíssimas", diz o padre Benedito Ferraro, da PUC de Campinas, que foi professor de padre Rossi em São Paulo. Trata-se, na verdade, de uma deficiência comum à nova geração do clero.
Como os clérigos não fazem o provão do MEC, a melhor maneira de aferir a queda do nível cultural dos que se dedicam à vida religiosa é mesmo acompanhá-los nas missas e escolas. Observadores graduados não têm gostado do que vêem. "Alguns novos padres estão muito mal preparados. Já ouvi barbaridades, erros na construção do discurso e na interpretação das leituras bíblicas", reclama o teólogo salesiano João Luís Gonçalves. "A queda do nível dos padres é galopante", completa Luiz Roberto Benedetti, professor da PUC de Campinas.
A pesquisa que faz a melhor radiografia da indigência cultural dos novos padres é de autoria do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris). O levantamento mostra que a maioria dos religiosos do país tem a mesma origem de sempre: cresceu na zona rural e pertence a famílias pobres. Seminários e conventos — assim como a carreira militar — sempre foram destino para filhos de classes menos favorecidas. Por isso, os dados do Ceris só fazem sentido se cruzados com a decadência do ensino público e das escolas de teologia e filosofia. Quando se apresentam para a vida religiosa, os candidatos já chegam com sérias lacunas na formação. E boa parte dos seminários se revela incapaz de reeducá-los. O somatório não é dos mais animadores para o futuro da instituição. "Os novos padres são mais fracos intelectualmente. A Igreja tem um conteúdo doutrinário a ser transmitido. Se eles não forem convincentes, ficará difícil manter antigos fiéis ou arrebanhar novos", analisa Sílvia Fernandes, socióloga do Ceris.
Até três décadas atrás, os candidatos entravam para os "Seminários Menores" ainda na infância e faziam o equivalente aos antigos ginásio e colegial sob a orientação da Igreja. Depois, iam para o Maior, correspondente ao terceiro grau, onde enfrentavam uma média de sete anos de estudos. Só então eram ordenados. Esse sistema de preparação fechado começou a entrar em desuso por conta das mudanças determinadas pelo Concílio Vaticano II, que desenhou a Igreja moderna. Também contribuiu para a queda desse tipo de educação um fenômeno iniciado na Europa. Os casais começaram a ter menos filhos e preferiam mantê-los em casa até os 18 anos. No Brasil, houve um ingrediente a mais: o crescimento da Teologia da Libertação, que desaprova os Seminários Menores e privilegia o contato do candidato com a comunidade.

“Sou órfão de pai, tenho seis irmãos e sempre estudei em escolas públicas. No início tive dificuldades com os estudos no seminário. Mas consegui superá-las” -- Mário Barbosa Filho, estudante do Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio.

Assim como ocorre com as faculdades privadas, os seminários multiplicam-se pelo país afora. Hoje, cada diocese quer ter o seu. Torna-se mais difícil, então, controlar o nível de ensino. "Já fui convidado a dar cursos em outros Estados porque os alunos não agüentavam padres e bispos que ensinavam matérias que não dominavam", conta o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, professor da PUC de São Paulo. Os jovens que escapam das dioceses e entram em uma ordem ressentem-se menos disso. Roque Luiz Sibione, de 30 anos, poderia ser exemplo da pesquisa do Ceris. Veio da zona rural de Urupês, no interior paulista, e é filho de lavradores. Mas entrou para a ordem dos salesianos aos 23 anos e hoje tem mestrado em educação.
As instituições mais rígidas tentam manter o nível de ensino a duras penas. Antes, elas costumavam ter entre os alunos integrantes de uma elite que destinava pelo menos um dos filhos para uma respeitável carreira religiosa — e em um movimento circular também era conferido status à instituição. Hoje, esses seminários se limitam a transferir prestígio aos novos alunos. Roberto Luiz Oliveira Almeida, de 23 anos, está no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio de Janeiro, desde 1999. É de Santa Cruz, bairro pobre na Zona Oeste da cidade. Quando a vocação despertou, era vendedor de uma fábrica de chocolates. "Eu pensava em seguir carreira militar", lembra. "Nos estudos tive surpresas, mas não cheguei a levar um choque."
"Os meninos que chegam com péssima bagagem cultural têm acompanhamento intensivo", diz dom Karl Joseph Romer, bispo auxiliar do Rio, há 26 anos responsável pelas vocações. Os seminários cariocas contam com laboratório de idiomas, bibliotecas e bons professores. Cada aluno custa R$ 800 mensais à Arquidiocese do Rio. "Eu sempre digo a eles: empenhem-se e reconheçam o que a Igreja fez por vocês, pois no fim de oito anos de seminário seria possível construir uma igreja por aluno", diz o padre João Geraldo Bellocchio, vice-reitor do Seminário Arquidiocesano de São José. Mário Antônio Barbosa Filho, de 27 anos — morador do Morro do Salgueiro, uma das mais violentas favelas cariocas, órfão de pai e com seis irmãos —, segue à risca o conselho do professor. Está há três anos no seminário e integra a parcela dos que recebem atenção redobrada. "Tive dificuldades no início", reconhece.
Em São Paulo, o nível dos candidatos é tão preocupante que a arquidiocese implantou há quatro anos um intensivo chamado propedêutica. "Eles estudam a fé católica e a catequese, mas também preenchem lacunas", conta dom Gil Antônio Moreira, bispo auxiliar. Dom Gil imagina que em cinco anos a média de ordenações em São Paulo duplique.
Por ironia, os bispos esperam que algumas novas vocações sejam despertadas pelo sucesso de Marcelo Rossi, que em seus tempos de seminário tinha notas apenas regulares. A inspiração pode não ser tão ruim assim. No debate sobre a importância do nível cultural dos novos clérigos, há sempre quem lembre de São Francisco de Assis, para quem discussões filosófico-teológicas não tinham relação com seguir os ensinamentos de Jesus Cristo. Além disso, o protetor dos párocos foi um francês nascido no fim do século XVIII que comeu o pão que o diabo amassou para tornar-se padre. Aluno limitado, São João Maria Batista Vianney chegou a ser expulso do seminário. Foi reconduzido por sua bondade e se tornou um dos religiosos mais reverenciados da história da Igreja. Resta saber se todo novo padre no Brasil vem abastecido com essa santidade.

domingo, 15 de maio de 2011

O fim do mundo, de novo


"Se existe um risco imediato de destruição, ele não vem do céu, de cometas ou de asteroides assassinos, mas de nossas próprias mãos", escreve Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-05-2011.

Eis o artigo.

Parece que o mundo vai acabar.

De novo. A data definida pelo americano Harold Camping, um fundamentalista cristão de 89 anos, é resultado de cálculos e numerologia obscura, usando eventos bíblicos e catástrofes naturais. Camping previu o Apocalipse antes, em 1994. Mas desta vez está certo, diz ele.

Recentemente, cerca de 50 pessoas juntaram-se a Camping em Washington para espalhar a notícia. Entre eles, um oficial do Departamento de Segurança Interna que tirou férias especialmente para isso."Tenho de voltar no dia 23,mas não será preciso, pois no dia 21 sumirei", disse ao "Washington Post".

Nesse meio-tempo, um ateu está se oferecendo para tomar conta dos animais domésticos que ficarem para trás, já que eles não vão para o céu. Já tem mais de mil clientes.

Ironicamente, os céus estão oferecendo uma série de espetáculos neste mês, com vários alinhamentos planetários visíveis no hemisfério Sul. Como em tempos imemoriais, esses alinhamentos costumam ser interpretados como sinais apocalípticos. Em 11 de maio, Mercúrio, Vênus e Júpiter convergiram numa região com apenas 2,05 graus de diâmetro.

Como referência, a Lua cheia ocupa meio grau. Portanto, os planetas se juntaram no equivalente a quatro luas cheias, uma visão belíssima. No dia 21, o dia da previsão de Camping, Mercúrio, Vênus e Marte estarão numa região com apenas 2,13 graus de diâmetro.

Em 1186, os cinco planetas conhecidos então (até Saturno) alinharam-se nos céus, causando pânico por toda a Europa. Inúmeros outros fenômenos celestes, de eclipses a cometas e chuvas de meteoros, fizeram o mesmo no decorrer da história.

E continuam assustando as pessoas desnecessariamente. Os céus foram sem previstos como sagrados.

Portanto, fenômenos inesperados e misteriosos eram interpretados como mensagens de deuses prontos para punir os pecadores. Conforme discuto em meu livro "O Fim da Terra e do Céu", essa tradição apocalíptica não se reserva apenas a fanáticos religiosos. Cientistas também participam ocasionalmente, se bem que sob a luz de argumentos racionais e testáveis.

De fato, é importante considerarmos o risco de um asteroide ou de um cometa com mais de um quilômetro de diâmetro colidir com a Terra (possível, mas realmente muito improvável), ou de o Sol explodir (isso ocorrerá, em aproximadamente 5 bilhões de anos), ou de o próprio Universo ter um fim (terá, continuando sua expansão indefinidamente, enquanto as estrelas morrerão e se apagarão, se bem que existem outras alternativas).

Começos e fins são parte integral do discurso científico desde o nascimento da ciência moderna no século XVII. Newton previu o fim do mundo para 2060. Halley, famoso pelo cometa homônimo, sugeriu que o Dilúvio foi causado pelo impacto de um cometa contra a Terra.

Felizmente, podemos afirmar com confiança absoluta que alinhamentos planetários não trarão o Apocalipse e que o Sol, mesmo que volta e meia lance enormes bólidos de matéria em nossa direção, continuará fundindo hidrogênio em hélio de forma relativamente pacata por muito tempo. Se existe ameaça mais imediata, ela não vem dos céus, mas das nossas próprias mãos.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Quando a consciência manda desobedecer


As escolas e religiões pregam a obediência como virtude importante. Entretanto, a própria Organização das Nações Unidas (ONU) consagra o 15 de maio como "o dia mundial da objeção de consciência”. Assim, fica claro que toda pessoa tem o direito de desobedecer, quando a ordem dada se opõe à sua consciência. Em Israel, jovens recrutados ao serviço militar obrigatório invocam a objeção de consciência para se negar a combater palestinos ou queimar casa de pessoas pobres, ato comum perpetrado pelas tropas de ocupação israelita. Nos Estados Unidos, por objeção de consciência, muitos jovens se negam a fazer guerra em outros países do mundo. E vários religiosos foram presos por rasgarem em um ato público e diante do Congresso Nacional o seu documento de incorporação militar. É uma atitude oposta a dos generais nazistas que se defenderam das acusações de genocídio, sob o pretexto de que tinham matado inocentes por obediência a seus superiores. Deveriam ter desobedecido. Em vários países do mundo, grupos religiosos e civis se negam a pegar em armas e exigem substituir os treinamentos militares por ações pacíficas. Fazem serviço civil no lugar do serviço militar obrigatório e a lei reconhece este direito.

No Brasil, a Constituição garante aos jovens brasileiros este direito. Entretanto, as leis complementares até agora ainda não foram sancionadas. Por isso, o direito da objeção de consciência ainda não se pode exercer verdadeiramente. Poucos brasileiros têm consciência disso. A ONU consagra toda esta semana para aprofundar este direito e divulgar esta atitude pacifista. Só se reconhece a dignidade humana onde a consciência individual e a fé de cada grupo forem respeitadas.

A espiritualidade ecumênica compreende a obediência não como mera execução mecânica de uma ordem dada, mas como abertura interior que leva a pessoa a escutar e acolher livremente a palavra e as propostas de outro. Esta liberdade interior permite o diálogo e se for o caso o dissenso e a discordância. Há pessoas que executam uma ordem recebida de forma tão mecânica que sua atitude não é humana. Ao contrário alguém pode discordar de uma orientação e não cumpri-la, mantendo-se, entretanto, fiel ao espírito do diálogo. A obediência crítica e amorosa propõe a colaboração mútua no lugar da competição e contém um elemento subversivo à mesquinhez do mundo.

De fato, no decorrer da história, a humanidade tem progredido mais pela ação de pessoas que ousam desafiar as leis e inovar os costumes do que através daquelas que simplesmente seguem caminhos convencionais. Os grandes líderes espirituais da humanidade foram pessoas que romperam com o sistema e, para exercer sua profecia, ousaram desobedecer a autoridades constituídas e a leis vigentes.

A sociedade considera "objeção de consciência” a atitude de quem, por convicção religiosa, social ou política, se nega a pegar em armas e a participar de guerras e atos violentos. Homens e mulheres, admirados no mundo inteiro, alguns até premiados com o Nobel da Paz, em seus países, foram considerados como rebeldes e desobedientes. Para os budistas tibetanos, Sua Santidade, o Dalai Lama, é a 14a reencarnação do Buda da Compaixão, mas, para o governo chinês, é um dissidente, desobediente às leis. O prêmio Nobel da Paz foi dado a dois latino-americanos ilustres: a Rigoberta Menchu, índia maya que viveu anos sem poder voltar à Guatemala para não ser assassinada e a Adolfo Perez Esquivel, advogado que, durante anos, era constantemente ameaçado de prisão na Argentina. No Brasil da ditadura militar, Dom Hélder Câmara, era escutado no mundo inteiro, enquanto, em nosso país, os meios de comunicação não podiam divulgar nada que falasse em seu nome. No passado, Gandhi e Martin Luther King foram presos e condenados como desobedientes às leis oficiais. Para os católicos, os mártires são testemunhas da fé. Muitos foram condenados à morte por se negar a reconhecer o imperador como divino; Outros foram mortos por se negarem a pegar em armas. Do ponto de vista da fé, são heróis, mas a sociedade da época os condenou como desrespeitadores das leis e criminosos.

Objetar é opor-se a cumprir uma lei que fere a nossa consciência. A violência, seja cometida por uma pessoa individual, seja institucional, ou cometida pelo Estado, nunca construirá um mundo de paz e justiça.

Há objeção de consciência quando a pessoa se nega a cumprir ordens antiéticas. Em alguns países, cidadãos exigem saber a destinação exata do pagamento de seus impostos. E não aceitam pagar impostos se o dinheiro for aplicado em sociedades que fabricam armas ou investem em negócios anti-éticos. Em todo o mundo, há consumidores que não compram carne de fazendas que destroem florestas e dizimam a natureza.

Se a objeção de consciência é direito de toda pessoa diante do poder social e político, com maior razão ainda, as religiões e Igrejas deveriam reconhecer um direito à dissidência e à objeção de consciência diante de um poder religioso autoritário ou, por qualquer razão, injusto. Conforme a Bíblia, quando as autoridades de Jerusalém proibiram os apóstolos a falar no nome de Jesus, estes responderam: "Entre obedecer a Deus e aos homens, é melhor obedecer a Deus. Por isso, nós desobedecemos a vocês”(At 5, 29).
Marcelo Barros
Monge beneditino e escritor
Adital

domingo, 8 de maio de 2011

'Eficiência e justiça não bastam para assegurar a felicidade'': o valor do dom na economia. Entrevista especial com Stefano Zamagni

“O cristianismo é uma religião encarnada que, enquanto tal, se preocupa com a condição de vida dos homens que vivem em sociedade”. E essa compreensão foi a grande novidade da primeira encíclica de João XXIII, Mater et Magistra, publicada há 50 anos. Para o economista italiano Stefano Zamagni, a encíclica também se contrapõe ao “risco espiritualista que tende a reduzir a mensagem cristã a uma mensagem somente para a alma e não também para o corpo”.

Por isso, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que “é preciso reconhecer ao princípio de gratuidade um posto de primeiro plano na vida econômica”. E questiona: “Qual é a função própria do dom? A de fazer compreender que, ao lado dos bens de justiça, há os bens de gratuidade e que, portanto, não é autenticamente humana a sociedade que se contenta somente com os bens de justiça”.

IHU On-Line – Quais são os pontos centrais abordados pelo Papa João XXIII no momento histórico da publicação da encíclica Mater et Magistra?

Stefano Zamagni – A Mater et Magistra foi publicada no término da fase da reconstrução pós-bélica em um contexto caracterizado ainda pelo domínio colonial de alguns países do Ocidente avançado e não ainda pelos dois fenômenos de porte epocal que emergiram nas duas décadas subsequentes: a globalização e a terceira revolução industrial. No que diz respeito à área dos problemas econômicos e sociais, a mensagem da Mater et Magistra foi especificamente dirigida aos governos nacionais, para que assumissem as suas responsabilidades no coplanejamento do caminho de desenvolvimento econômico dos seus países. Em certo sentido, a Mater et Magistra “abençoa” o modelo de economia mista, segundo o qual o setor público e o setor privado deviam cooperar para o bem comum.


"A Mater et Magistra mostra que o cristianismo é uma religião encarnada que, enquanto tal, se preocupa com a condição de vida dos homens"



IHU On-Line – Em sua opinião, quais foram as grandes novidades do documento para a conjuntura da época?

Stefano Zamagni – A grande novidade da Mater et Magistra foi a de fazer com que se compreendesse que o cristianismo é uma religião encarnada que, enquanto tal, se preocupa com a condição de vida dos homens que vivem em sociedade. A Mater et Magistra fala contra o risco espiritualista que tende a reduzir a mensagem cristã a uma mensagem somente para a alma e não também para o corpo.

IHU On-Line – Justiça, equidade, subsidiariedade são termos que se repetem na encíclica. Qual a ética econômica subjacente à Mater et Magistra? Como os avanços e desafios ético-econômicos propostos por João XXIII nos desafiam hoje?

Stefano Zamagni – A matriz ética que sustenta a implantação da Mater et Magistra é a da ética das virtudes, assim como elaborada por São Tomás [de Aquino]. As noções de equidade, subsidiariedade, justiça, hoje exigem ser reelaboradas, exatamente para levar em conta as res novae [coisas novas] abordadas na primeira pergunta. Não podemos, por conseguinte, pensar em aplicar à realidade hodierna as formulações da Mater et Magistra que, validíssimas para o contexto da época, apresentam-se hoje um tanto obsoletas.

Por outro lado, a respeito disso, a primeira mensagem de destaque que nos vem da Caritas in Veritate, de Bento XVI, por exemplo, é o convite a superar a já obsoleta dicotomia entre a esfera do econômico e a esfera do social. A modernidade deixou-nos de herança a ideia com base na qual, para se ter acesso ao clube econômico, é indispensável visar ao lucro e ser motivado por intenções exclusivamente de autointeresse. Como se dissesse que não somos plenamente empreendedores se não perseguimos a maximização do lucro. Caso contrário, deveríamos nos contentar em fazer parte da esfera social. Essa conceituação absurda – por sua vez filha do erro teórico que confunde a economia de mercado que é o genus com sua particular species sua que é o sistema capitalista – levou a identificar a economia com o lugar da produção da riqueza (ou da renda), e o social, com o lugar da sua distribuição e da solidariedade.

A Caritas in Veritate diz-nos, ao contrário, que se podem fazer negócios mesmo que sejam buscados fins de utilidade social e que se seja movido à ação por motivações de tipo pró-social. Esse é um modo concreto, embora não o único, de preencher o perigoso abismo entre o econômico e o social – perigoso porque, se é verdade que um agir econômico que não incorpore em seu interior a dimensão do social não seria eticamente aceitável, é igualmente verdade que um social meramente redistributivo que não faça as contas com o vínculo dos recursos não seria sustentável em longo prazo: antes de poder distribuir, é necessário, de fato, produzir.

"Os quatro princípios cardeais da Doutrina Social da Igreja são: centralidade da pessoa humana; solidariedade; subsidiariedade; bem comum"

Bento XVI quis, assim, desafiar um lugar comum ainda duro de morrer, segundo o qual a ação econômica seria algo muito sério e exigente para ser deixado ao contágio dos quatro princípios cardeais da Doutrina Social da Igreja, que são: centralidade da pessoa humana; solidariedade; subsidiariedade; bem comum. Daí a implicação prática com base na qual os valores da Doutrina Social da Igreja deveriam achar espaço unicamente nas obras de natureza social, dado que aos especialistas da eficiência caberia a tarefa de guiar a economia. É mérito dessa encíclica, certamente não secundário, a contribuição para sanar essa grave lacuna, que é ao mesmo tempo cultural e política.

Contrariamente ao que se pensa, não é a eficiência o fundamentum divisionis para distinguir o que é empresa e o que não é, e isso pela simples razão de que a categoria da eficiência pertence à ordem dos meios e não à dos fins. De fato, devemos ser eficientes para atingir o melhor fim que livremente escolhemos dar à nossa ação. Mas a escolha do fim não tem nada a ver com a própria eficiência. Só depois que se escolheu a meta a ser alcançada é que o empreendedor deve procurar ser eficiente. Uma eficiência com fim em si mesma acabaria no eficientismo, que é uma das causas mais frequentes, hoje, de destruição da riqueza, como a crise econômico-financeira em curso confirma.

Economia civil

Pois bem, o ganho que a Caritas in Veritate oferece é o de tomar posição em favor da concepção de mercado, típica da tradição de pensamento da economia civil, segundo a qual se pode viver a experiência da socialidade humana dentro de uma vida econômica normal, e não fora ou ao lado dela, como sugere o modelo dicotômico de ordem social. Essa é uma concepção que é alternativa, ao mesmo tempo, tanto à que vê o mercado como lugar da exploração e da opressão do forte sobre o fraco, quanto à que, em consonância com o pensamento anarcoliberal, o vê como lugar capaz de dar solução a todos os problemas da sociedade.

A economia civil coloca-se como alternativa com relação à economia de tradição smithiana, que vê o mercado como a única instituição verdadeiramente necessária para a democracia e para a liberdade. A Doutrina Social da Igreja nos recorda, ao invés, que uma boa sociedade é certamente fruto do mercado e da liberdade, mas há exigências, que remetem ao princípio de fraternidade, que não pode ser evitadas, nem remetidas somente à esfera privada ou à filantropia. Ao mesmo tempo, a Doutrina Social da Igreja não toma parte junto a quem combate os mercados e vê o econômico em conflito endêmico e natural com a vida boa, invocando um decréscimo e uma retirada do econômico da vida em comum. Ao contrário, ela propõe um humanismo multidimensional, no qual o mercado não é combatido ou “controlado”, mas é visto como momento importante da esfera pública – esfera que é muito mais vasta do que é estatal – que, se concebido e vivido como lugar aberto também aos princípios de reciprocidade e do dom, pode construir a “cidade”.

IHU On-Line – Como o senhor analisa os conceitos de “dom”, “gratuidade” ou “comunhão”, que servem de base para algumas teorias econômicas que visam a ser eticamente justas?

Stefano Zamagni – O acolhimento da perspectiva da gratuidade dentro da ação econômica comporta duas consequências, dentre tantas. A primeira concerne ao modo de olhar a relação entre crescimento econômico e programas de bem-estar social. Quem vem primeiro: o crescimento econômico ou o bem-estar social? Dito de outro modo, o gasto com o welfare [bem-estar social] deve ser considerado como consumo social ou como investimento social? A tese defendida na Caritas in Veritate, por exemplo, é que, nas condições históricas atuais, a posição de quem vê o welfare como fator de desenvolvimento econômico é muito mais confiável e justificável do que a posição contrária.

"A economia civil coloca-se como alternativa à economia que vê o mercado como a única instituição necessária para a democracia e para a liberdade"


Como se sabe, o Estado social, na segunda metade do século XX, representou uma instituição voltada à busca de dois objetivos principais: por um lado, reduzir a pobreza e a exclusão social, redistribuindo, por meio da tributação, renda e riqueza (a assim chamada função de “Robin Hood”); e, por outro lado, oferecer serviços de seguridade, favorecendo uma alocação eficiente dos recursos ao longo do tempo (função de “cofrinho”). O instrumento cogitado para a necessidade foi, basicamente, o seguinte: os governos usam o dividendo do crescimento econômico para melhorar a posição relativa de quem está pior, sem piorar a posição absoluta de quem está melhor. No entanto, todo um conjunto de circunstâncias – a globalização e a terceira revolução industrial – causou, nos países do Ocidente avançado a partir dos anos 1980, uma diminuição de velocidade do crescimento potencial. Isso acabou dando fôlego, durante a última década, ao convencimento de que os mecanismos redistributivos da tributação e dos serviços sociais são a causa do enfraquecimento do crescimento potencial e, consequentemente, são responsáveis por gerar uma escassez de recursos para a ação social dos governos. Os resultados desse modo de ver o welfare estão aí para todos verem. Não somente o velho estado de bem-estar mostra-se hoje incapaz de enfrentar as novas pobrezas; ele é igualmente impotente contra as desigualdades sociais, em contínuo aumento na Europa.

As razões que sustentam a tese da existência de um trade-off entre proteção social e crescimento econômico são muito menos plausíveis do que aquelas que militam em favor da tese oposta. Não é de nenhuma forma verdade que o reforço dos institutos de proteção social implicam na condenação a um crescimento mais baixo, em longo prazo insustentável. É verdade, ao contrário, que um welfare pós-hobbesiano, centrado principalmente em políticas de promoção das capacidades das pessoas, constitui, na atual fase pós-fordista, caracterizada pela emergência de novos riscos sociais, o antídoto mais eficaz contra possíveis tentações antidemocráticas e, desse modo, o fator decisivo de desenvolvimento econômico.

A função do dom

Reconhecer ao princípio de gratuidade um posto de primeiro plano na vida econômica tem a ver com a difusão da cultura e da práxis da reciprocidade. Junto com a democracia, a reciprocidade é um valor fundante de uma sociedade. Ou melhor, poder-se-ia também sustentar que é da reciprocidade que a regra democrática extrai seu sentido último. Em que “lugares” a reciprocidade é de casa, ou seja, é praticada e alimentada? A família é o primeiro de tais lugares: pense-se nas relações entre pais e filhos, e entre irmãos e irmãs. Depois, há a cooperativa, a empresa social e várias formas de associações. Não é verdade, talvez, que as relações entre os componentes de uma família ou entre sócios de uma cooperativa são relações de reciprocidade? Hoje, sabemos que o progresso civil e econômico de um país depende basicamente de quão difundidas entre os seus cidadãos são as práticas de reciprocidade. Sem o mútuo reconhecimento de uma pertença comum, não há eficiência ou acumulação de capital que se mantenha. Há hoje uma imensa necessidade de cooperação: eis porque precisamos expandir as formas da gratuidade e reforçar as que já existem. As sociedades que extirpam do seu próprio campo as raízes da árvore da reciprocidade são destinadas ao declínio, como a história nos ensinou há muito tempo.

Qual é a função própria do dom? A de fazer compreender que, ao lado dos bens de justiça, há os bens de gratuidade e que, portanto, não é autenticamente humana a sociedade que se contenta somente com os bens de justiça. Qual é a diferença? Os bens de justiça são aqueles que nascem de um dever; os bens de gratuidade são os que nascem de uma obbligatio. São bens, a saber, que nascem do reconhecimento de que eu estou ligado a um outro, que, em certo sentido, ele é parte constitutiva de mim. Eis porque a lógica da gratuidade não pode ser simplistamente reduzida a uma dimensão puramente ética. A gratuidade, de fato, não é uma virtude ética. A justiça, como já ensinava Platão, é uma virtude ética, e estamos todos de acordo sobre a importância da justiça, mas a gratuidade refere-se, ao contrário, à dimensão supraética do agir humano, porque a sua lógica é a superabundância, enquanto a lógica da justiça é a lógica da equivalência.

E, então, a Caritas in Veritate nos diz que uma sociedade, para funcionar bem e para progredir, precisa que, dentro da práxis econômica, haja sujeitos que compreendam o que são os bens de gratuidade, que se entenda, em outras palavras, que necessitamos fazer refluir o princípio de gratuidade nos circuitos da nossa sociedade.

"A Doutrina Social da Igreja nos recorda que uma boa sociedade é fruto do mercado e da liberdade, mas há exigências que remetem à fraternidade"


O desafio a que Bento XVI nos convida é o de lutar para restituir o princípio do dom à esfera pública. O dom autêntico, afirmando o primado da relação sobre sua exoneração, do laço intersubjetivo sobre o bem doado, da identidade pessoal sobre o lucro, deve poder encontrar espaço de expressão em qualquer lugar, em qualquer âmbito do agir humano, incluindo aí a economia. A mensagem que a Caritas in Veritate nos deixa é o de pensar a gratuidade e, portanto, a fraternidade como sinal da condição humana e, por conseguinte, de ver no exercício do dom o pressuposto indispensável para que Estado e mercado possam funcionar, tendo como objetivo o bem comum. Sem práticas ampliadas do dom, se poderá ter um mercado eficiente e um Estado competente (e até justo), mas certamente as pessoas não serão ajudadas a realizar a alegria de viver. Porque eficiência e justiça, embora unidas, não bastam para assegurar a felicidade das pessoas.

IHU On-Line – Por outro lado, como entender o “bem comum” a partir do ensino social da Igreja? Como uma economia baseada em princípios cristãos pode fomentá-lo e construí-lo?

Stefano Zamagni – Para a Doutrina Social da Igreja, o bem comum é o bem de todos os seres humanos e de todo o ser humano. Três são as dimensões fundamentais do humano: material, sociorrelacional, espiritual. A ideia de bem comum nos faz entender que não é lícito sacrificar a dimensão sociorrelacional para favorecer a material. Por exemplo, apesar de aumentar o PIB, não é aceitável que se renuncie à festa. Da mesma forma, não é lícito sacrificar a dimensão espiritual das pessoas para favorecer a rede de relações sociais. O princípio do bem comum diz-nos que a organização do trabalho, o funcionamento dos mercados, as formas da política devem consentir o desenvolvimento harmonioso de todas as três dimensões.

A fraternidade – palavra já presente na bandeira da Revolução Francesa, mas que a ordem pós-revolucionária depois abandonou, por razões conhecidas, até o seu cancelamento do léxico político-econômico – recebeu da escola de pensamento franciscana o significado que ele conservou no decorrer do tempo. Que é o de constituir, ao mesmo tempo, o complemento e a exaltação do princípio de solidariedade. De fato, enquanto a solidariedade é o princípio de organização social que permite que os desiguais se tornem iguais, o princípio de fraternidade é o princípio de organização social que permite que os iguais sejam diferentes. A fraternidade permite que as pessoas que são iguais em sua dignidade e em seus direitos fundamentais expressem diferentemente o seu plano de vida ou o seu carisma. As épocas que deixamos para trás, os séculos XIX e principalmente o XX, caracterizaram-se por grandes batalhas, sejam culturais, sejam políticas, em nome da solidariedade, e isso foi algo bom: pense-se na história do movimento sindical e na luta pela conquista dos direitos civis. O ponto é que a boa sociedade não pode se contentar com o horizonte da solidariedade, porque uma sociedade que fosse só solidária, e não também fraterna, seria uma sociedade da qual cada um procuraria se afastar. O fato é que, enquanto a sociedade fraterna é também uma sociedade solidária, o inverso não é necessariamente verdadeiro.

Ter esquecido o fato de que não é sustentável uma sociedade de seres humanos em que se extingue o senso de fraternidade e em que tudo se reduz, por um lado, a melhorar as transações baseadas na troca de equivalentes e, por outro, em aumentar as transferências executadas por estruturas assistenciais de natureza pública, dá-nos conta do porquê, apesar da qualidade das forças intelectuais em campo, não se tenha ainda alcançado uma solução credível do grande trade-off entre eficiência e equidade. Não é capaz de ter futuro a sociedade em que se dissolve o princípio de fraternidade; isto é, não é capaz de progredir a sociedade em que existe somente o “dar por ter” ou o “dar por dever”. Eis porque nem a visão liberal-individualista do mundo, em que tudo (ou quase tudo) é troca, nem na visão Estadocêntrica no Estado da sociedade, em que tudo (ou quase tudo) é obrigação, são guias seguros para nos fazer sair das águas rasas em que as nossas sociedades estão hoje atoladas.

Religiosidade e economia

Coloca-se a questão: por que no último quarto de século a perspectiva do discurso do bem comum – segundo a formulação dada a ela pela Doutrina Social da Igreja, depois de pelo menos um par de séculos durante os quais ela havia de fato saído de cena – está hoje reemergindo como se fosse um rio subterrâneo? Por que a passagem dos mercados nacionais para o mercado global, consumada no decorrer do último quarto de século, está tornando novamente atual o discurso sobre o bem comum? Observo, de passagem, que o que acontece faz parte de um movimento mais vasto de ideias sobre economia, um movimento cujo objeto é a ligação entre religiosidade e performance econômica. A partir da consideração de que as crenças religiosas são de importância decisiva para forjar os mapas cognitivos dos sujeitos e para plasmar as normas sociais de comportamento, esse movimento de ideias busca indagar o quanto a prevalência em um determinado país (ou território) de uma certa matriz religiosa influencia a formação de categorias de pensamento econômico, os programas sociais, a política escolar e assim por diante. Depois de um longo período de tempo, durante o qual a célebre tese da secularização parecia ter dito a palavra final sobre a questão religiosa, ao menos no que concerne ao campo econômico, o que está acontecendo hoje soa verdadeiramente paradoxal.

"Reconhecer ao princípio de gratuidade um posto de primeiro plano na vida econômica tem a ver com a difusão da reciprocidade"


Não é assim difícil explicar o retorno ao debate cultural contemporâneo da perspectiva do bem comum, verdadeiro sinal da ética católica no âmbito socioeconômico. Como João Paulo II em muitas ocasiões esclareceu, a Doutrina Social da Igreja não deve ser considerada como uma teoria ética ulterior com relação às tantas já disponíveis na literatura, mas sim como uma “gramática comum” a elas, porque fundada sobre um ponto de vista específico, o de cuidar do bem humano. Na verdade, embora as diversas teorias éticas ponham o seu fundamento quer na pesquisa de regras (como acontece no jusnaturalismo positivista, segundo o qual a ética deriva da norma jurídica), quer no agir (pense-se no neocontratualismo rawlsiano ou no neoutilitarismo), a Doutrina Social da Igreja acolhe como seu ponto arquimediano o “estar com”. O sentido da ética do bem comum é que, para poder compreender a ação humana, devemos nos pôr na perspectiva da pessoa que age – cf. Veritatis Splendor, 78 – e não na perspectiva da terceira pessoa (como faz o jusnaturalismo), ou seja, do espectador imparcial (como Adam Smith havia sugerido). De fato, o bem moral, sendo uma realidade prática, é conhecido primeiramente não por quem o teoriza, mas sim por quem o pratica: é ele que sabe localizá-lo e, portanto, escolhê-lo com certeza todas as vezes que estiver em discussão.

IHU On-Line – Como podemos entender o significado de “propriedade”, explicitado na Mater et Magistra, dentro da atual conjuntura socioeconômica?

Stefano Zamagni – Três são as formas principais de propriedade: privada, pública, comum. A Mater et Magistra nos convida a considerar a relevância da propriedade comum nas nossas sociedades. É um erro grave pensar que a propriedade, senão for privada, deve ser pública (isto é, estatal). Grupos de cidadãos podem se associar para administrar juntos: commons (ar, água, energia, solo) com formas de negócio como as cooperativas comunitárias, fundações de comunidade etc. Em muitos casos, não somente a propriedade comum assegura resultados de eficiência mais elevada, mas também cria coesão social, reforçando os laços interpessoais. Particularmente, a difusão da cultura do dom e a prática de experiências tais como a da economia de comunhão são facilitadas se o ordenamento constitucional do país prevê a propriedade comum.

IHU On-Line – Na Mater et Magistra, especialmente em um período pós-Guerras Mundiais e pré-Guerra Fria, João XXIII se preocupava com as grandes questões da humanidade e pensava na necessidade de um órgão supranacional para gerir essas demandas. Isso foi retomado por Bento XVI em Caritas in Veritate. Como o senhor analisa essa questão?

Stefano Zamagni – Um tema de extraordinária atualidade que, na Caritas in Veritate, é tratado com particular força é o que diz respeito ao vínculo entre a paz e o desenvolvimento integralmente humano. Um tema que a Populorum Progressio de Paulo VI popularizou com a célebre frase: “O desenvolvimento é o novo nome da paz”. Pois bem, plenamente alinhado com tal posição, Bento XVI sistematiza um pensamento, que sintetizo nos seguintes termos: a) a paz é possível, porque a guerra é um evento e não um estado de coisas. A guerra é, portanto, uma emergência transitória, por mais longa que possa ser, não é uma condição permanente da sociedade humana; b) a paz, porém, deve ser construída, porque não é algo espontâneo, dado que é fruto de obras que visam criar instituições de paz; c) na atual fase histórica, as instituições de paz mais urgentes são as que têm a ver com a problemática do desenvolvimento humano.

Quais são as instituições de paz que merecem hoje prioridade absoluta? Para esboçar uma resposta, convém fixar a atenção sobre alguns fatos estilizados que conotam a nossa época. O primeiro concerne ao escândalo da fome. É sabido que a fome não é uma trágica novidade destes tempos; mas o que a torna hoje escandalosa e, portanto, intolerável é fato de ela não ser uma consequência de uma production failure em nível global, isto é, de uma incapacidade do sistema produtivo para assegurar alimentos para todos. Não é, portanto, a escassez dos recursos, em nível global, que causa fome e privações diversas. É, ao invés, uma institutional failure, ou seja, a falta de instituições adequadas, econômicas e jurídicas, o principal fator responsável por isso.


"A solidariedade permite que os desiguais se tornem iguais. A fraternidade permite que os iguais sejam diferentes"


Considerem-se os seguintes eventos. O extraordinário aumento da interdependência econômica, que ocorreu ao longo do último quarto de século, implica em que amplos segmentos da população possam ser negativamente influenciados, em suas condições de vida, por eventos que ocorrem em lugares também bastante distantes e a respeito dos quais não têm nenhum poder de intervenção. Acontece assim que, às bem conhecidas “carestias de depressão”, sejam acrescentadas hoje as “carestias do boom”, como Amartya Sen amplamente documentou. Não somente isso, mas também a expansão da área do mercado – um fenômeno que em si é positivo – significa que a capacidade de um grupo social de ter acesso aos alimentos depende, de modo essencial, das decisões de outros grupos sociais. Por exemplo, o preço de um bem primário (café, cacau etc.), que constitui a principal fonte de renda para uma determinada comunidade, pode depender daquilo que acontece com o preço de outros produtos, e isso independentemente de uma modificação nas condições de produção do primeiro bem.

Um segundo fato configurado refere-se à natureza modificada do comércio e da concorrência entre países ricos e pobres. No decorrer dos últimos 20 anos, a taxa de crescimento dos países mais pobres foi mais alta do que a dos países ricos: cerca de 4% contra aproximadamente 1,7% ao ano no período de 1980 a 2000. Trata-se de um fato absolutamente novo, já que nunca antes havia acontecido que os países pobres crescessem mais rapidamente do que os ricos. Isso vale para explicar porque, no mesmo período, tenha se registrado o primeiro declínio da história do número de pessoas pobres em termos absolutos (ou seja, aqueles que, em média, têm à disposição menos de um dólar por dia, levando-se em consideração a paridade do poder de compra). Prestando a devida atenção ao aumento dos níveis de população, pode-se dizer que a taxa dos pobres absolutos do mundo passou de 62% em 1978 a 29% em 1998. (É natural que tal resultado notável não foi registrado de modo uniforme nas várias regiões do mundo. Por exemplo, na África subsaariana, o número de pobres absolutos passou de 217 milhões em 1987 para 301 milhões em 1998). Ao mesmo tempo, todavia, a pobreza relativa, isto é, a desigualdade – assim como é medida pelo coeficiente de Gini ou pelo índice de Theil – aumentou dramaticamente de 1980 até hoje. É sabido que o índice de desigualdade total é dado pela soma de dois componentes: a desigualdade entre países e a no interior de um único país. Como conclusão do importante trabalho de Peter H. Lindert e de Jeffrey G. Williamson, Does Globalization Make the World More Unequal? (Chicago, 2003), grande parte do aumento da desigualdade total é atribuível ao aumento do segundo componente, seja nos países densamente populosos (China, Índia e Brasil) que registraram elevadas taxas de crescimento, seja nos países do Ocidente avançado. Isso significa que os efeitos redistributivos da globalização não são unívocos: nem sempre o rico ganha (seja país ou grupo social), nem sempre o pobre perde.

Um terceiro fato configurado: a relação entre o estado nutricional das pessoas e a sua capacidade de trabalho influencia tanto o modo como o alimento é distribuído entre os membros da família – de modo especial, entre homens e mulheres –, quanto o modo como funciona o mercado de trabalho. Os pobres possuem somente um potencial de trabalho: para transformá-los em força de trabalho efetiva, a pessoa necessita de nutrição adequada. Pois bem, se não são adequadamente ajudados, os subnutridos não são capazes de satisfazer essa condição em uma economia de livre mercado. A razão é simples: a qualidade do trabalho que o pobre tem condições de oferecer ao mercado do trabalho é insuficiente para “exigir” o alimento do qual precisa para viver de modo decente. Como a moderna ciência da nutrição demonstrou, de 60% a 75% da energia que uma pessoa extrai do alimento são utilizados para manter o corpo vivo; somente a parte restante pode ser usada para o trabalho ou para outras atividades. Eis porque nas sociedades pobres podem ser criadas perfeitas “armadilhas de pobreza”, destinadas a durar até por longos períodos de tempo.

Fracasso institucional e o escândalo da fome

O que é pior é que uma economia pode continuar a alimentar armadilhas de pobreza até mesmo se sua renda cresce em nível agregado. Por exemplo, pode acontecer – como em realidade acontece – que o desenvolvimento econômico, medido em termos de PIB per capita, encoraje os agricultores a transferir o uso de suas terras da produção de cereais à produção de carne, mediante um aumento das criações, já que as margens de ganho da segunda são superiores às obteníveis com a primeira. Entretanto, o consequente aumento do preço dos cereais irá piorar os níveis nutricionais das faixas pobres de população, às quais não é permitido o acesso ao consumo de carne. O ponto a enfatizar é que um incremento no número de indivíduos de baixa renda pode aumentar a subnutrição entre os mais pobres por causa de uma mudança na composição da demanda dos bens finais. Observe-se, enfim, que a ligação entre status nutricional e produtividade do trabalho pode ser “dinástica”: uma vez que uma família ou um grupo social tenha caído na armadilha da pobreza, é muito difícil para os descendentes sair dela, mesmo que a economia cresça como um todo.


"A Doutrina Social da Igreja deve ser considerada como uma ‘gramática comum’, porque está fundada sobre um ponto de vista específico, o de cuidar do bem humano"


Que conclusões se tira de tudo isso? Que o reconhecimento de um nexo forte entre as institutional failures, de um lado, e o escândalo da fome e o aumento das desigualdades globais, de outro, recorda-nos que as instituições não são – assim como os recursos naturais – um dom da natureza, mas sim regras do jogo econômico que são definidas em sede política. Se a fome dependesse – como foi o caso até o início do século XX – de uma situação de escassez absoluta dos recursos, não haveria outra coisa a fazer do que pedir a compaixão fraterna, ou seja, a solidariedade.

Saber, no entanto, que ela depende de regras, isto é, das instituições, em parte obsoletas e em parte equivocadas, não pode deixar de nos levar a intervir nos mecanismos e nos procedimentos por força dos quais essas regras são fixadas e se tornaram exequíveis. A urgência de proceder nesse sentido nos é sugerida também pelo seguinte trecho de Norberto Bobbio, que ilustra, com rara eficácia, o nexo entre liberdade, igualdade e luta para adquirir posições de domínio: “Na história humana, as lutas pela superioridade se alternam com as lutas pela igualdade. E é natural que ocorra essa alternância, porque a luta pela superioridade pressupõe dois indivíduos ou grupos que tenham alcançado entre si uma certa igualdade. A luta pela igualdade precede frequentemente à luta pela superioridade… Antes de chegar ao ponto de lutar pelo domínio, cada grupo social deve conquistar um certo nível de paridade com seus próprios rivais” (BOBBIO, N. Destra e Sinistra. Roma: Donzelli, 1999. p.164).

Não há quem não veja a dificuldade que a realização de intervenções institucionais tais como essas colocam. É por isso que a Caritas in Veritate fala da urgência de dar vida a uma autoridade política global, que, porém, há de ser de tipo subsidiário e poliárquico. Isso implica, de um lado, na recusa de dar vida a um tipo de superestado, e, de outro, a vontade de atualizar de modo radical o trabalho desenvolvido em 1944, em Bretton Woods, quando foi projetada a nova ordem econômica internacional ao término de um longo período de guerras.

IHU On-Line – O senhor colaborou com Bento XVI na confecção da Caritas in Veritate, de Bento XVI, tão citada até aqui, tendo sido um de seus principais mentores. Que avaliação o senhor faz do ensino social da Igreja perante os desafios sociais e econômicos da contemporaneidade?

Stefano Zamagni – A novidade da Caritas in Veritate é a de levar ao máximo cumprimento os princípios das Doutrinas Sociais da Igreja contidas na Mater et Magistra e na Populorum Progressio à luz dos problemas da nova fase histórica que começou há cerca de 30 anos. Pode-se dizer que a Caritas in Veritate é a primeira encíclica social da pós-modernidade. Em particular a grande novidade da Caritas in Veritate é a afirmação de que o princípio de fraternidade deve encontrar espaço de aplicação na vida econômica habitual. Isso não aparece na Mater et Magistra.

Albert Camus escreveu em Núpcias, o Verão: “Se há um pecado contra a vida, é talvez não tanto de se desesperar por causa dela, mas sim de esperar em uma outra vida e de se isentar da implacável grandeza desta”. Camus não era crente, mas nos ensina uma verdade: não se deve pecar contra a vida presente desqualificando-a, humilhando-a. Não se deve, por isso, deslocar o baricentro da nossa fé para o além, a ponto de tornar insignificante o presente: pecaremos conta a Encarnação.


"O século XV foi o século do primeiro humanismo. O século XXI exprime, com força, a exigência de aportar em um novo humanismo"


Trata-se de uma opção antiga que remonta aos Padres da Igreja que chamavam a Encarnação de um Sacrum Commercium, para sublinhar a relação de reciprocidade profunda entre o humano e o divino e, sobretudo, para sublinhar que o Deus Cristão é um Deus de homens que vivem na história, e que se interessa, ou melhor, que se comove pela sua condição humana. Amar a existência é, então, um ato de fé e não somente de prazer pessoal. O que leva à esperança, que não se preocupa somente com o futuro, mas também com o presente, porque precisamos saber que as nossas obras, mais do que um destino, têm um significado e um valor também aqui e agora.

O século XV foi o século do primeiro humanismo, um acontecimento tipicamente europeu. O século XXI, já desde seu início, exprime, com força, a exigência de aportar em um novo humanismo. Naquele momento, foi a transição do feudalismo para a Modernidade o fator decisivo a impulsionar naquela direção. Hoje, é uma passagem de época igualmente radical – a da sociedade industrial à pós-industrial, ou seja, da modernidade para a pós-modernidade – que nos faz entrever a urgência de um novo humanismo.

Globalização, financeirização da economia, novas tecnologias, questão migratória, aumento das desigualdades sociais, conflitos identitários, questão ambiental, dívida internacional são somente algumas das palavras que falam do atual “mal-estar na civilização” – para evocar o título de um célebre ensaio de S. Freud. Perante os novos desafios, a mera atualização das velhas categorias de pensamento ou o simples recurso a técnicas mesmo que sofisticadas de decisão coletiva não servem à necessidade. É necessário ousar caminhos diferentes: é esse, substancialmente, o convite sincero que a Caritas in Veritate nos dirige.

(Por Moisés Sbardelotto)