quarta-feira, 21 de julho de 2010

Um outro jeito de ser Igreja


Leonardo Boff *
Adital

Quem leu meu último artigo -Onde está a verdadeira crise da Igreja - poderá ter ficado desesperançdo. Ai analisei a estrutura de poder da Igreja, centralizada, piramidal, absolutista e monárquica. Este tipo de poder não favorece o ideal evangélico de igualdade, de fraternidade e a participação dos fiéis. Antes fecha as portas à participação e ao amor. É que esse tipo de poder, por sua natureza, precisa ser forte e frio. O modelo de Igreja-poder se apresenta como a Igreja tout court, pior ainda, como querida por Cristo, quando, como mostrei, surgiu historicamente e é apenas sua instância de animação e direção, perfazendo menos de 0,1% de todos os fiéis. Portanto, não é toda a Igreja, apenas uma parte mínima dela.

Mas a Igreja-comunidade como fenômeno religioso e movimento de Jesus é muito mais que a instituição. Ela encontra outras formas de organização, bem mais próximas ao sonho do Fundador e de seus primeiros seguidores. Inteligentemente, os bispos brasileiros em sua reunião anual em Brasília de 4-13 de janeiro do corrente ano confessaram: "só uma Igreja com diferentes jeitos de viver a mesma fé será capaz de dialogar relevantemente com a sociedade contemporânea". Com isso eles quebraram a pretensão de um único modo de ser, aquele da Tradição do poder. Sem negar este, há muitos outros jeitos: o jeito da Igreja da libertação, dos carismáticos, dos religiosos e religiosas, da Ação Católica, até da Opus Dei, da Comunhão e Libertação e da Canção Nova, só para dizer as mais conhecidas.

Mas há um jeito que é todo especial e altamente promissor, nascido nos anos 50 do século passado no Brasil e que ganhou relevância mundial, pois foi assimilado em muitos países: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Os bispos lhe dedicaram uma animadora "Mensagem ao Povo de Deus sobre as CEBs". Curiosamente, elas surgiram no momento em que eclodiu no Brasil uma nova consciência histórica. Na sociedade: o sujeito popular ansiando por mais participação política e na Igreja: o sujeito eclesial, ansiando também por mais participação e corresponsabilidade eclesial. As CEBs constituem outro modo de ser Igreja, cujo sujeito principal, mas não exclusivo, são os pobres. Seu estilo é comunitário, participativo e inserido na cultura local. Os serviços são rotativos e a escolha, democrática. Articulam continuamente fé e vida, ativos no campo religioso, criando novos serviços e ritos e ativos no campo social ou político, nos sindicatos, nos movimentos sociais como no MST ou nos partidos populares.

Não sabemos exatamente quantas são, mas calcula-se que cheguem a cem mil comunidades de base, envolvendo alguns milhões de cristãos. Os bispos constatam seu alto valor inovador e anti-sistêmico. O mercado expulsou as relações de cooperação e solidariedade enquanto nas CEBs se vive as relações fundadas na gratuidade, na lógica do oferecer-receber-retribuir. Elas assumiram a causa ecológica, por isso, se entendem também como CEBs = comunidades ecológicas de base. Desenvolveram uma forte espiritualidade do cuidado para com a vida e para com a Mãe Terra. Dai resultou mais respeito, veneração e cooperação com tudo o que existe e vive.

As CEBs mostram como a memória sagrada de Jesus pode receber outra configuração social, centrada na comunhão, no amor fraterno e na alegria de testemunhar a vitória da vida contra as opressões. É o significado existencial da ressurreição de Jesus como insurreição contra o tipo de mundo vigente.

Humildemente os bispos testemunham que elas ajudam a Igreja a estar mais comprometida com a vida e com o sofrimento dos pobres. Mais ainda: interpelam a Igreja inteira chamando-a à conversão, ao compromisso para a transformação do mundo em mundo de irmãos e irmãs.

Esse modo de ser Igreja pode servir de modelo para a inserção na cultura contemporânea, urbana e globalizada. Se fosse assumido como inspiração para o projeto do Papa Bento XVI de "reconquistar" a Europa, seguramente teria algum sucesso. Ver-se-iam comunidades de cristãos, intelectuais, operários, mulheres, jovens, vivendo sua fé em articulação com os desafios de suas situações. Não pretenderiam ter o monopólio da verdade e do caminho certo. Mas se associariam a todos os que buscam seriamente uma nova linguagem religiosa e um novo horizonte de esperança para a Humanidade.

[Autor de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja, Record (2008)].
* Teólogo, filósofo e escritor

domingo, 4 de julho de 2010

Teologia Pluralista e Teologia da Revelação. Entrevista especial com Faustino Teixeira


O teólogo Faustino Teixeira fala, nesta entrevista que concedeu à IHU On-Line, por e-mail, da teologia do pluralismo e do diálogo inter-religioso e sobre a influência da teologia latino-americana para a construção da paz mundial. “Não há meio termo nessa luta essencial: ou formamos essa nova aliança global para cuidar de nosso planeta e lutar contra a dor dos humanos ou arriscamos nossa própria destruição. E aqui acrescento o desafio do diálogo interreligioso e do respeito à diversidade das opções espirituais, religiosas ou não”, escreveu.

O Prof. Dr. Faustino Teixeira é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O teólogo é também pesquisador do ISER-Assessoria (RJ) e consultor da Capes. Fez o doutorado e o pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Itália).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação você faz do desenvolvimento da teologia do pluralismo religioso e do diálogo inter-religioso dos últimos anos? Quais os principais avanços e limites?
Faustino Teixeira – A teologia do pluralismo religioso vem buscando responder a um dos mais importantes desafios do século XXI: como acolher com respeito a pluralidade religiosa. Aos poucos vem firmando a convicção de que o pluralismo religioso é uma realidade de princípio, não um dado contingencial, inserindo-se no misterioso desígnio de Deus para a humanidade. Temos um núcleo de teólogos que defendem com firmeza esta perspectiva, entre os quais podemos destacar o pioneirismo de Raimond Panikkar, Edward Schillebeeckx, Jacques Dupuis, Claude Geffré, Michael Amaladoss, John Hick, entre outros. É um tema que vem envolvendo também a reflexão da teologia da libertação, e o fruto mais decisivo nesse sentido é a coletânea de cinco volumes, Pelos muitos caminhos de Deus, organizada pela ASET.

O fato do Congresso da SOTER organizar uma mesa sobre o tema, agora em julho, é uma expressão viva desse novo interesse. Gosto de utilizar uma metáfora de Christian Ducquoc para situar a questão: a “sinfonia adiada”. Trata-se de um recurso por ele utilizado para romper com a ingênua idéia de um plano divino magistral que estaria conduzindo as outras tradições religiosas para um único aprisco. No âmbito da teologia católica conhecemos de perto esta perspectiva de uma “teologia do acabamento”, que não consegue ver nas outras religiões senão “marcos de espera” para uma inserção “purificadora” no cristianismo. Esta “obsessão pela unidade” pode, em verdade, obstruir ou ocultar o caráter enigmático que preside a diversidade inter-religiosa. De fato, a verdade da religião não se condensa numa única tradição religiosa, mas na sinfonia que preside a sua interação.

O estar sintonizado com a reflexão mística inter-religiosa tem-me ajudado muito a lidar distintamente com essa diversidade religiosa, com abertura, acolhida e delicadeza. Sigo as pistas abertas pelo grande místico sufi andaluz, Ibn´Arabi (1165-1240), que nos adverte para o risco de nos fixarnos exclusivamente num credo particular, sem atenção devida aos sinais de Deus que acontecem por todo canto e a todo momento. A seu ver, com esse fechamento acabamos deixando escapar inúmeros bens, ou mesmo a própria “Ciência da Verdade”. Há um ponto luminoso que preside toda diversidade religiosa, e não podemos perdê-lo de vista exclusivizando nosso olhar numa única perspectiva. A questão do diálogo interreligioso está intimamente vinculada a essa questão. Defendo a idéia de que a abertura ao pluralismo de princípio é um requisito essencial ao diálogo inter-religioso. Não se pode apagar o “mistério pessoal intransponível” que habita o mundo do outro. Há algo de irredutível e irrevogável no âmbito da alteridade, e o diálogo interreligioso traduz o aprendizado ou o intercâmbio de dons que acontecem nessa “viagem fraterna” de interlocutores distintos em sua busca pelo Mistério sempre maior.

IHU On-Line – Considerando a persistência e, às vezes, aumento dos conflitos étnico-raciais no mundo, quais as chances de eficácia dos múltiplos esforços pelo diálogo inter-religioso nos últimos anos?
Faustino Teixeira – Em obra recente sobre a globalização, democracia e terrorismo (2007), o historiador britânico, Eric Hobsbawm, mostrou com pertinência que o século XX foi “o mais mortífero de toda a história documentada”. Assinala que o montante de mortes causadas pelas guerras do período ou a elas associada vem estimado em 187 milhões de pessoas. Foi também um século marcado por fome, violência e devastações: uma história perturbadora de trânsito de grandes contingentes humanos fugindo da pobreza, da repressão e das guerras. Não há mudanças substantivas em nosso século XXI e agora acrescentam-se novos e complexos desafios como os relacionados à escassez da água e de alimentos e a afirmação crescente de identidades que se revelam agressivas (ou mesmo mortíferas) e impermeáveis. Nada mais atual que o princípio programático defendido por Hans Kung e levado à frente pela Fundação Ética Mundial: “Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões.

Não há diálogo entre as religiões sem uma busca dos fundamentos das religiões”. Temos hoje importantes iniciativas no campo do diálogo interreligioso (DIR). Em âmbito mais institucional temos, no lado católico, a atuação do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso (PCDI), e citaria aqui o papel do Comitê conjunto para o DIR deste Conselho com o Comitê Permanente de Al-Azhar. Da parte dos muçulmanos, menciono a importante Mensagem Interreligiosa de Aman e outras iniciativas como a carta dos 138 teólogos muçulmanos a Bento XVI e os responsáveis cristãos. Em âmbito acadêmico, podem ser lembradas as atuações da Fundação Ética Mundial e do Grupo de Pesquisa Islamo-cristão (GRIC), fundado na França em 1977. Outras iniciativas acontecem no âmbito do diálogo da experiência religiosa: o Diálogo Interreligioso Monástico, o Caminho da Paz (envolvendo Dalai Lama e Laurence Freeman), a Comunidade de Santo Egídio (Itália). No Brasil temos o singular trabalho exercido pelo CESEP, com importantes incursões no campo do DIR, e o bonito trabalho realizado pelo Programa Gestando o Diálogo Interreligioso e o Ecumenismo (GDIREC), da Unisinos. Podemos também lembrar a atuação de expoentes dialogais como Monja Coen e Marcelo Barros. Mas há ainda muito o que fazer no Brasil nessa área.

O sucesso do empreendimento dialogal vai depende do efetivo empenho dedicado a seu favor. As chances são imensas, apesar das resistências ao contrário. É sempre difícil criar uma sensibilidade dialogal em tempos de acirramento identitário. Mas pistas importantes vão sendo levantadas. O fundamento teológico do DIR está no mistério do Deus criador e de sua acolhida amorosa. Busca-se recolher “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme” do Deus da Vida, escondidos na criação e na história (DM 41 e 22). O DIR revela-se essencial para a vida cristã, e por duas razões fundamentais. É imprescindível para a paz no mundo e uma forma precisa de colocar em prática a lei mais essencial do cristianismo: amar o próximo como a si mesmo (Lc 10,27). É curioso perceber que em iniciativas recentes do DIR, como a Mensagem Interreligiosa de Aman, assinalou-se como traço comum das tradições religiosas proféticas a unidade do amor a Deus e do amor ao próximo.

Em sua encíclica Deus caritas est (2005), Bento XVI enfatizou o nexo indivisível entre esses dois amores. E assinalou que “a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive o odiar”. E há hoje que acrescentar o amor à natureza e toda a criação. Deus manifesta-se presente em “toda a vida e no inteiro universo”, é o maravilhoso dinamismo que o sustenta e movimenta a partir de dentro. Como sublinha Hans Kung, Deus é “a inapreensível ´dimensão infinita`em todas as coisas”. Somos nós, em nossa contingência, que não conseguimos captar essa presença. Há que educar o olhar para adentrar-se nesse mistério e nessa maravilha. E aqui toco num campo fundamental para o DIR que é a espiritualidade. É ela que faculta o trabalho interior de desapego e abertura, essenciais para um verdadeiro encontro inter-religioso.

O diálogo deve começar no interior de cada um, criando e favorecendo espaços de hospitalidade. Como mostrou com acerto Leonardo Boff em recente artigo, a espiritualidade é gestadora de uma paz novidadeira, que vem do âmbito da profunidade. É uma paz que “irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa vontade. Essa paz é feita de referência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério no mundo. Ela alimenta o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendio, de perdoar e de ser perdoado”.

IHU On-Line – Que lugar as bandeiras da ética, do futuro sustentável e da paz mundial encontram no fazer teológico latino-americano atual?
Faustino Teixeira – Penso que a reflexão teológica latino-americana deve seguir as inspiradoras pistas lançadas pela Carta da Terra. Ali se diz que “devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz”. Não há meio termo nessa luta essencial: ou formamos essa nova aliança global para cuidar de nosso planeta e lutar contra a dor dos humanos ou arriscamos nossa própria destruição. E aqui acrescento o desafio do diálogo interreligioso e do respeito à diversidade das opções espirituais, religiosas ou não. Há diversos caminhos que conduzem o ser humano ao seu destino e eles devem ser respeitados. Temos que recuperar o significado etimológico de salvação, entendida como uma dinâmica positiva de preservação da integridade do ser humano. Como nos mostra Adolphe Gesché, “salvar é levar alguém até a própria meta, é permitir que ele se realize, que atinja o seu objetivo”. E esta é uma aspiração legítima de todos e não se restringe ao campo das religiões. Trago também à baila a importante declaração em favor de uma ética mundial, lançada no Parlamento da Religiões Mundiais, em 1993 (Chicago). Falou-se ali que a humanidade precisa não apenas de reformas sociais e ecológicas, mas também de uma renovação espiritual, que possa favorecer à vida dos seres humanos uma “fidelidade de fundo” e um “horizonte de sentido”. A nossa reflexão teológica deve estar atenta a tudo isso e aperfeiçoar seu instrumental para avançar nessa direção.

Nesse sentido, penso que o tema do Congresso da Soter foi muito feliz e oportuno. É um tema de grande atualidade e os teólogos não podem passar à margem de suas exigências. Estou muito motivado para participar do evento, verificar as pistas que vão se abrindo na reflexão teológica latino-americana a respeito e partilhar com os amigos as reflexões que venho fazendo nos últimos anos. Estou também animado a participar da mesa específica sobre a teologia do pluralismo religioso junto com Vigil e Queiruga. Estamos juntos nessa desafiadora tarefa de construir uma teologia do pluralismo religioso em sintonia e abertura ao caminhar da teologia da libertação.