domingo, 29 de agosto de 2010

Raimon Panikkar, buscador do Mistério


Faustino Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), recorda a vida e a obra de Raimon Panikkar, falecido na semana passada. Ele será sepultado no dia 3 de setembro, no Mosteiro de Montserrat, próximo de Barcelona.

Eis o artigo.

Os místicos dizem que a morte mais difícil não é a morte física, essa morte pequena, mas aquela que acontece com o desapego radical e o mergulho na profundidade da alma. A expressão utilizada é “morrer antes de morrer”. Assim aconteceu com Raimon Panikkar, que nos deixou nesse agosto de 2010. Talvez tenha sido um dos Buscadores do Mistério mais ousados e provocadores. Sua vida foi toda tecida pela dinâmica da relação. De mãe católica e pai hindu, traz em sua vida esse traço de dialogação.

Uma vez perguntado sobre o seu itinerário pessoal respondeu que partiu cristão, descobriu-se hindu e retornou budista, sem ter jamais cessado de ser cristão. E anos depois, acrescentou que no seu retorno, descobriu-se um cristão melhor. Esse é Panikkar, referência singular para o diálogo das religiões e a reflexão sobre a espiritualidade. A perspectiva dialogal estava envolvida em sua vida como o musgo na pedra. Não via futuro nas religiões a não ser no intercâmbio criativo entre elas. Dizia que sem a interlocução externa as religiões não poderiam senão afogar-se. Propunha um “diálogo dialógico”, mais existencial, de “fecundação mútua”, que pudesse de fato envolver os parceiros numa busca comum do mistério. O diálogo para ele era, antes de tudo, um ato espiritual, que implicava uma profunda consciência da humildade e vulnerabilidade dos interlocutores diante do Mistério sempre maior e adiante. Mesmo reconhecendo todas as dificuldades que acompanham a abertura e o êxodo para o mundo do outro, acreditava que esse era o caminho seguro para a construção da identidade. Tornava-se necessário conhecer e dialogar com uma outra tradição religiosa para poder situar verdadeiramente a própria tradição. Em frase lapidar, assinalava que “aqueles que não conhecem senão sua própria religião não a conhecem verdadeiramente”.

Na visão de Panikkar, o diálogo interreligioso requer como condição fundamental a atitude de “uma busca profunda, uma convicção de que estamos caminhando sobre um solo sagrado”. Há que se despir de preconceitos para acessar o mundo do outro. E essa viagem não é fácil. Mas há que sair do “esplêndido isolamento”. O encontro com o outro torna-se hoje “inevitável, importante e urgente”. Mas alongar as cordas é sempre muito difícil. Exige um questionamento profundo às nossas convicções e a disposição de deixar-se transformar pelo outro. Como indica Panikkar, é também um encontro “perigoso e desconcertante”, mas certamente purificador. É a condição indispensável para nos darmos conta da profundidade inexaurível da experiência humana e dos limites precisos de nossos vínculos contingenciais e limitados. Para Panikkar, o salto desarmado na realidade é “audacioso e mortal”, e esse foi o exemplo deixado por peregrinos como Buda e Jesus. No horizonte dessa busca o que existe é algo encantadoramente simples, como destaca Mestre Eckhart: algo que é “florescente e verdejante”. Panikkar indica que o verdadeiro buscador deve voltar-se para o que é simples por excelência: o Mistério que nos habita e que também brilha no mundo do outro. Na verdade, o diálogo é uma viagem novidadeira que toca de perto nossa própria peregrinação pessoal, no sentido do encontro com a plenitude de nós mesmos. Há que jogar-se com liberdade nessa água, nos diz Panikkar, ainda que nossas pernas vacilem e nosso coração titubeie. Mesmo sabendo que há o risco de nele nos perdermos e afogar, é o caminho essencial para tocar o fundo.

No último período de sua jornada, Panikkar dedicou-se ao tema da mística e da espiritualidade. Para ele, a mística vem entendida como a “experiência integral da vida” ou “experiência da Realidade última”. E a categoria Realidade assumia para ele uma importância única, de densidade mais ecumênica para expressar o significado profundo da experiência do Mistério sempre maior. Enquanto a mística traduz para ele essa “experiência suprema da realidade”, a espiritualidade vem entendida como o caminho para alcançar essa experiência. É ela que faculta o essencial fermento para a qualidade da vida e para o encontro autêntico com o outro.

Em bela iniciativa da editora italiana Jaca Book, toda a obra de Panikkar está sendo recolhida e organizada e vários volumes, divididos por temas, entre os quais: mística e espiritualidade, religião e religiões, cristianismo, hinduísmo, budismo, cultura e religiões em diálogo, hinduísmo e cristianismo, visão trinitária e cosmoteândrica, mistério e hermenêutica, filosofia e teologia, secularidade sagrada, espaço tempo e ciência (Opera Omnia).

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Direitos humanos e diplomacia nuclear devem andar juntos



O angustiante caso de Sakineh Mohammadi Ashtiani, mãe de dois filhos que um tribunal iraniano sentenciou à morte por apedrejamento em um caso de adultério, atraiu merecida atenção mundial ao draconiano código penal do Irã, que reserva suas mais cruéis punições às mulheres.
A prática do apedrejamento, especialmente, é tão repulsiva que até mesmo aliados políticos como o Brasil se sentiram compelidos a agir. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ofereceu asilo a Ashtiani, no final de semana, por meio de um apelo direto ao presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. A intervenção brasileira envia uma mensagem poderosa à república islâmica: seu histórico de direitos humanos não poderá ser separado de sua diplomacia nuclear.
Antes da Revolução Islâmica de 1979, nos anos em que eu trabalhava como juíza no Irã, relações sexuais consensuais entre adultos não constavam do código penal.
A revolução impôs uma versão da lei islâmica extraordinariamente rigorosa até mesmo pelos padrões dos países muçulmanos, tornando o sexo extraconjugal crime passível de punição legal. Sob o código penal revolucionário, a punição para homem ou mulher solteiros que pratiquem sexo extraconjugal passou a ser de cem chibatadas; e o artigo 86 dispõe que uma pessoa casada culpada de adultério seja morta por apedrejamento.
Como a lei iraniana permite a poligamia, na prática dá aos homens uma rota de fuga: podem alegar que sua relação adúltera constituía um casamento temporário. Mas as mulheres casadas acusadas de adultério não têm direito a essa exceção.
Os códigos leais do Irã estão repletos de incoerências e indefinições que tornam impossível respeitar os princípios do direito. O processo criminal por adultério e a promulgação da sentença de morte por apedrejamento não requerem nem mesmo um queixoso pessoal; se for possível provar que um homem ou mulher cometeu adultério, mesmo que o cônjuge o perdoe, o transgressor deve ser executado por apedrejamento. O artigo 105 permite que um juiz sentencie uma adúltera com base apenas na queixa de seu marido.

BOCA A BOCA
O apedrejamento vem sendo criticado por diversos juristas islâmicos, sobretudo pelo aiatolá Yousef Saanei. Acreditam que uma punição dessa ordem era aplicada nos dias iniciais do advento do islamismo, no século 7, segundo os costumes então vigentes. Apontam que o Corão não menciona apedrejamento e acreditam que punições mais amenas, como multas ou prisão, podem ser consideradas.
Para evitar os protestos internacionais, o governo se abstém de anunciar publicamente os veredictos de execução por apedrejamento. É só por meio de informações passadas de boca em boca por familiares e advogados que os casos chegam ao conhecimento da mídia. Por isso, nem mesmo sabemos exatamente quantos iranianos receberam essa punição nas três últimas décadas.

SHIRIN EBADI é ativista de direitos humanos e foi a primeira mulher muçulmana a receber o Nobel da Paz.
Leia a íntegra em
www.folha.com. br/mu777927

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Onde Estava Deus? Por Que Existe O Mal?


Adital - Antônio Mesquita Galvão *

Onde Estava Deus?
Por Que Existe O Mal?
Onde Estava Deus?


Em minha tese de doutorado em Teologia Moral, a respeito da misteriosa existência do mal ("Deus é bom. Então por que existe o mal?"), deparei-me com essa questão, indagando onde estaria o Criador quando atrocidades e acidentes da natureza ocorriam. Primeiro foi no "terremoto de Lisboa" (retratado no "Cândido", de Voltaire), depois nas tragédias de Auschwitz, onde milhões de judeus foram eliminados.

A filósofa Susan Neiman detecta com maestria que a empreitada da modernidade atinge seu impasse no Holocausto. Em sua obra "O mal no pensamento moderno" (Ed. Difel, 2002), Neiman afirma que se a humanidade perdeu a fé na natureza, em Lisboa, é provável que tenha perdido a fé em si mesma em Auschwitz, que foi conceitualmente devastador porque revelou uma possibilidade que se esperava não ver: seres humanos comportando-se como demônios.


Todas as discussões filosóficas sobre o assunto insistem no ponto de que as condições na Europa apontavam além da barbárie das câmaras de gás, mas para a falência ética da civilização. A questão "Deus onde estás?" parece um clamor desesperado de quem perdeu a fé. Mas não.

Recentemente o papa Bento XVI foi à Polônia e, corajosamente fez questão de visitar Auschwitz. Nessa visita, chocado com o que ali ocorreu, ele fez um desabado: "Onde estava Deus que permitiu tudo isto?". O local é tão tétrico que os visitantes chegam a sentir o cheiro de coisa queimada, mais de sessenta anos após o fechamento dos fornos crematórios. As reações da comunidade internacional mostram que o episódio não foi superado e que as feridas ainda estão abertas. Em termos de ética e valores a última palavra sobre o holocausto ainda não foi dita.

Sintomaticamente, alguns segmentos da mídia e dos grupos de ateus e de certas sociedades secretas atribuíram à fala de Ratzinger um vacilo na fé, pois um papa não poderia - segundo eles - duvidar da presença de Deus. Outros entenderam tratar-se de uma explosão emocionada de um ser humano, idoso, diante do mal, que o homem livre pode cometer. É terrível a liberdade humana. Sartre chegou a afirmar que "o homem é condenado à liberdade". Não se trata, com certeza, de vacilos de fé, mas é como que uma explosão de indignação, incontida diante da manifestação da maldade humana.

O próprio Jesus, na cruz, diante da barbárie cometida por seus inimigos, repetindo um salmo, questionou: "Meu pai, por que me abandonaste?". Seria Jesus um homem sem fé? Ou, na impotência humana diante da violência, questionou os corações que se fecharam a Deus?

Em 1944, num campo de concentração, em represália por algumas fugas, os nazistas enforcaram um menino judeu de oito anos. Enquanto a criança se debatia nos esgares da morte, alguém perguntou: "Onde está Deus?". Alguém que assistia aquela cruel execução apontou para a vítima e falou: "Está ali, pendurado naquela corda!". O fato inconteste da presença de Deus indica que mesmo naqueles momentos de aparente fracasso, quando parece que o mal venceu, a presença de Deus ao lado de quem sofre é uma realidade palpável e inconteste. Mesmo na dor, no silêncio e num improvável abandono, ele nunca de se fazer presente. É preciso enxergá-lo. E buscá-lo.

Mesmo as pessoas que se dedicam ao estudo e à pesquisa da teologia e filosofia, e aí se inclui o homem Joseph Ratzinger, apenas conseguem tatear, tangenciando perifericamente a questão do mal, que é um mistério. Deus não criou o mal, mas respeita a liberdade de quem o pratica. Isto é um mistério que foge à compreensão, mesmo dos especialistas. Já que não podemos penetrar no âmago do mistério, cabe-nos evitá-lo e combatê-lo.


POR QUE EXISTE O MAL?

A maioria das formulações ontológicas, aquelas que se referem diretamente ao ser, apontam o mal como conseqüência da liberdade humana mal conduzida. Tanto é assim que J. P. Sartre († 1980) chega a afirmar que o homem nasce "condenado à liberdade", tamanho o risco que essa virtude desencadeia sobre o comportamento humano. A morte de tantas vítimas que diariamente bordam de sangue os jornais e os noticiários da tevê nos revelam a extensão do drama de uma sociedade colocada à mercê do mal. O móvel dos crimes e suas motivações a gente sabe. Os criminosos assaltam e matam porque têm liberdade para fazê-lo. Não vou entrar no perfil sociológico do delinqüente, para saber se ele é vítima ou não de um modelo social caótico. Vou reportar-me às idéias de Sartre, no fato de qualquer pessoa, inclusive o bandido, agir na contramão da ética, porque é livre para agir assim. É muito primário, num momento desses, perquirir estas razões. Quero ir mais adiante e dividir questões e assertivas com os leitores. Porque o bandido mata, ou assume esse risco ao praticar uma ação danosa, todos nós sabemos. O que foge ao nosso entendimento são os porquês referentes à morte do inocente. Em minha tese de Doutorado em Teologia Moral (apresentada em Paris, em 2005) cujo título é "Deus é bom. Então por que existe o mal?", eu me reporto a esse sofrimento do inocente, a partir da parábola bíblica do pobre Jó, passando pelo terremoto de Lisboa, em 1755, pelos extermínios nos campos do nazismo, culminando com o estupro seguido de morte de uma menina, na periferia de Porto Alegre. Em todos esses eventos, escutou-se o brado das pessoas, clamando "por que, meu Deus?". O clamor que se eleva em cima do sofrimento das vítimas inocentes fica sempre sem resposta. Sabemos que o mal não vem de Deus, que não pertence à sua vontade a ocorrência do sofrimento e das penas. O mal, desde as teorias teodicéias de Santo Agostinho († 430) e de G. W. Leibniz († 1716) é definido como uma "ausência do bem". No decorrer da história do mundo, os atos maléficos e maldosos têm sido atribuídos não a Deus, mas à liberdade humana mal direcionada. Aí entra a questão do "livre arbítrio". No que se refere ao sofrimento do inocente, as causas são mais profundas, e apontam para forças tenebrosas que, pelo duro golpe nas famílias e na sociedade, visam um desequilíbrio e fomentar um sentimento de revolta e descrença capaz de fazer vacilar os mais fortes.

Em minha tese de doutorado, cujo tema foi "Deus é bom. Então porque existe o mal?" eu me debruço sobre este assunto, afirmando que o mal subsiste no mundo por conta da liberdade humana e pela ação das potestades malignas que induzem a esse tipo de comportamento. Deus não evita o mal, mas dá meios de proteção a quem clama por ele.
O fato é que o mal não é criação de Deus. O ser humano também não é o inventor do mal, mas comete o pecado sob a inspiração do mal que se encontra nas estruturas. No mal que existe desde o princípio está a fonte de todo o desajuste.

* Doutor em Teologia Moral