domingo, 26 de junho de 2011

'A ordenação de mulheres é uma idéia nova na Igreja e está crescendo'. Entrevista especial com D. Clemente Isnard


Bispo emérito de Nova Friburgo, Rio de Janeiro, Dom Clemente José Carlos Isnard, nasceu em julho de 1917, ou seja, está comemorando 91 anos de idade este mês. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, muito lúcido, ele fala sobre sua experiência como bispo de Nova Friburgo por 33 anos e afirma que foi nesse período que descobriu "a opção preferencial pelos pobres, que ajudei com meu voto a implantar na Conferência de Puebla".

Dom Clemente foi bispo de Nova Friburgo de 1960 a 1992 e vice-presidente da CNBB de 1979 a 1983, quando Dom Ivo Lorscheiter era presidente e Dom Luciano Mendes de Almeida era secretário. Entre outros cargos, foi presidente do Departamento de Liturgia do CELAM de 1979 a 1982; 2º vice-presidente do CELAM de 1983 a 1987; participante das Conferência de Puebla (1979) e Santo Domingo (1992); e vigário geral da Diocese de Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Dentro da Igreja, sempre se destacou na dimensão litúrgica, tendo, inclusive, participado do Concílio Vaticano II.

Cursou Teologia na Escola Teológica de São Bento, do Rio de Janeiro, Filosofia no Mosteiro de São Bento, e é ainda bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Atualmente, vive em Recife. É autor de, entre outros, Dom Martinho (biografia) (Rio de Janeiro: Lúmen Christi, 1999).

Eis a entrevista:

IHU On-Line – O senhor completará 91 anos de idade neste mês de julho. Que balanço faz de sua vida como religioso e membro da Igreja?

Dom Clemente Isnard – Eu não esperava viver tanto tempo, embora minha mãe tenha chegado a quase 99 anos. Faleceu três dias antes. Tive uma vida resguardada por Deus, em uma família feliz e unida, e com uma babá extraordinária. Fiz os estudos em casa, com professores particulares. Terminei o ginásio com 13 anos. Com essa idade, ingressei na Faculdade de Direito e comecei a comunhão diária. Entrei na Ação Católica e, com 18 anos, ingressei no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Tive bons amigos no período universitário e uma tia em casa que foi providencial. Tive um diretor espiritual extraordinário na pessoa de Dom Martinho Michler. Ordenei-me padre em 1942 e em 1960 fui nomeado bispo, ficando 33 anos e meio como bispo de Nova Friburgo. Na CNBB e no CELAM fui eleito vice-presidente e fui cerca de 20 anos presidente da Comissão de Liturgia. Quando deixei minha Diocese, aos 76 anos, servi quatro anos como vigário geral de Duque de Caxias. Aos 90 anos, resolvi em Recife dedicar o resto dos meus anos à defesa do Movimento Litúrgico e do Concílio Vaticano II. Publiquei três livros. É um balanço muito homogêneo.

IHU On-Line – O que significa para o senhor a experiência de 33 anos de atuação como bispo da Diocese de Nova Friburgo?

Dom Clemente Isnard – Foi uma revelação ter sido bispo por 33 anos em Nova Friburgo. Descobri nesse período a opção preferencial pelos pobres que ajudei com meu voto a implantar na Conferência de Puebla. E como bispo participei do Concílio Vaticano II.

IHU On-Line – O que o motivou a escrever seu livro publicado recentemente Reflexões de um bispo sobre as instituições eclesiásticas atuais? Quais as questões mais candentes que o senhor aborda nestas reflexões?

Dom Clemente Isnard – Ser bispo representou para mim uma conversão. Achei, então, que devia dar um testemunho público acerca das atuais instituições eclesiásticas. São quatro capítulos em que escrevo sobre a nomeação dos bispos, o celibato dos padres, as ordenações femininas e os bispos eméritos. Por intervenção da Nunciatura a “Paulus” desistiu de publicar meu livro. Mas a Editora Olho D’Água de São Paulo se prontificou a fazê-lo, pelo que muito agradeço.

IHU On-Line – Que efeitos o senhor espera que produzam estas reflexões na Igreja católica?

Dom Clemente Isnard – Espero que essas idéias acabem frutificando na hora de Deus (quando Deus quiser) e sendo adotadas. Quando? Não sei.

IHU On-Line – Quais são os principais avanços e as principais dificuldades vividas pela Igreja na caminhada das comunidades após a promulgação da Sacrosanctum Concilium?

Dom Clemente Isnard – Nas Dioceses que adotaram o programa das CEBS (Comunidades Eclesiais de Base) os avanços foram os seguintes: celebração da Palavra de Deus aos domingos com distribuição da comunhão; leigos e leigas como ministros extraordinários do Batismo e testemunhas qualificadas do Matrimonio; difusão da Oração do Povo de Deus; modificação da espiritualidade. As dificuldades também existiram, mas vieram da força da inércia para adaptar o novo.

IHU On-Line – Para que aconteça uma reforma litúrgica em nosso contexto o que seria necessário? Por que a liturgia, que é festa do Povo de Deus, se reduz a um culto de espectadores adultos?

Dom Clemente Isnard – A reforma litúrgica avançou bastante. Para que avance mais, contamos com um trabalho nos seminários para animar a nova geração de padres.

IHU On-Line – Que mudanças e que alternativas se esperam da Igreja hierárquica para sair do que o senhor denuncia como farisaísmo no seu livro?

Dom Clemente Isnard – O farisaísmo está definido no Evangelho. Todo mundo que já leu uma vez o Evangelho sabe. É gostar das aparências, dos sinais exteriores, das roupas suntuosas, dos títulos. Praticando o Evangelho, excluímos o farisaísmo.

IHU On-Line – Uma flexibilização das posições do magistério da Igreja quanto ao celibato dos padres (por exemplo: celibato como escolha pessoal e não como condição) e a ordenação de mulheres não ajudaria a igreja a ser mais viva, mais mística e mais humana?

Dom Clemente Isnard – Essa pergunta encara uma verdade. Por exemplo: a escolha pessoal do celibato e não este transformado em condição, ajudaria a Igreja a ser mais viva e mais humana. Perguntando se ensina.

IHU On-Line – Qual é o maior impedimento para que os padres casados possam exercer seu ministério, sendo que na Igreja primitiva isso era permitido, e para que mulheres possam ser ordenadas? Como isto se justifica?

Dom Clemente Isnard – O casamento dos padres não é impedimento teológico. É impedimento meramente jurídico, dependendo de uma lei que pode ser revogada. Aliás, esse impedimento só existe na Igreja Latina. Na Melquita e em outras Igrejas unidas a Roma, os padres são casados. A ordenação das mulheres depende de outras coisas, inclusive de um documento infeliz de João Paulo II.

IHU On-Line – Na Conferência de Aparecida, a presença de mulheres foi muito limitada, e a questão do ministério das mulheres não esteve na pauta. Que possibilidades o senhor vê para se avançar nesta questão?

Dom Clemente Isnard – A idéia da ordenação sacerdotal de mulheres é nova na Igreja. É idéia que ainda está crescendo. O livro Mantenham as lâmpadas acesas, do cardeal Lorscheider, explica bem esse ponto nas páginas 58 e 59. E termina dizendo: “o assunto fica em aberto. Pode-se ter esperança ainda”!

IHU On-Line – Além do senhor e do cardeal Martini, que outras vozes e movimentos apontam hoje para uma reforma na Igreja?

Dom Clemente Isnard – Eu não saberia apresentar uma enumeração completa, mas há muitas vozes no dia de hoje pedindo uma reforma na Igreja. Pedir a reforma da Igreja não é ser contra, mas a favor. É querer que a Igreja volte aos seus tempos primitivos, à sua proximidade do Evangelho de seu fundador, Jesus Cristo.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Sustentabilidade e cuidado: um caminho a seguir


Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital

Há muitos anos, venho trabalhando sobre a crise de civilização que se abateu perigosamente sobre a humanidade. Não me contentei com a análise estrutural de suas causas, mas, através de inúmeros escritos, tratei de trabalhar positivamente as saídas possíveis em termos de valores e princípios que confiram real sustentatibilidade ao mundo que deverá vir. Ajudou-me muito, minha participação na elaboração da Carta da Terra, a meu ver, um dos documentos mais inspiradores para a presente crise. Esta afirma: "O destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal”.

Dois valores, entre outros, considero axiais, para esse novo começo: a sustentabilidade e o cuidado.

A sustentabilidade, já abordada no artigo anterior, significa o uso racional dos recursos escassos da Terra, sem prejudicar o capital natural, mantido em condições de sua reprodução, em vista ainda ao atendimento das necessidades das gerações futuras que também têm direito a um planeta habitável.

Trata-se de uma diligência que envolve um tipo de economia respeitadora dos limites de cada ecossistema e da própria Terra, de uma sociedade que busca a equidade e a justiça social mundial e de um meio ambiente suficientemente preservado para atender as demandas humanas.

Como se pode inferir, a sustentabilidade alcança a sociedade, a política, a cultura, a arte, a natureza, o planeta e a vida de cada pessoa. Fundamentalmente importa garantir as condições físico-químicas e ecológicas que sustentam a produção e a reprodução da vida e da civilização. O que, na verdade, estamos constatando, com clareza crescente, é que o nosso estilo de vida, hoje mundializado, não possui suficiente sustentabilidade. É demasiado hostil à vida e deixa de fora grande parte da humanidade. Reina uma perversa injustiça social mundial com suas terríveis sequelas, fato geralmente esquecido quando se aborda o tema do aquecimento global.

A outra categoria, tão importante quanto a da sustentabilidade, é o cuidado, sobre o qual temos escrito vários estudos. O cuidado representa uma relação amorosa, respeitosa e não agressiva para com a realidade e por isso não destrutiva. Ela pressupõe que os seres humanos são parte da natureza e membros da comunidade biótica e cósmica com a responsabilidade de protegê-la, regenerá-la e cuidá-la. Mais que uma técnica, o cuidado é uma arte, um paradigma novo de relacionamento para com a natureza, para com a Terra e para com os humanos.

Se a sustentabilidade representa o lado mais objetivo, ambiental, econômico e social da gestão dos bens naturais e de sua distribuição, o cuidado denota mais seu lado subjetivo: as atitudes, os valores éticos e espirituais que acompanham todo esse processo sem os quais a própria sustentabilidade não acontece ou não se garante a médio e longo prazo.

Sustentabilidade e cuidado devem ser assumidos conjuntamente para impedir que a crise se transforme em tragédia e para conferir eficácia às praticas que visam a fundar um novo paradigma de convivência ser-humano-vida-Terra. A crise atual, com as severas ameaças que globalmente pesam sobre todos, coloca uma impostergável indagação filosófica: que tipo de seres somos, ora capazes de depredar a natureza e de por em risco a própria sobrevivência como espécie e ora de cuidar e de responsabilizar-nos pelo futuro comum? Qual, enfim, é nosso lugar na Terra e qual é a nossa missão? Não seria a de sermos os guardiães e os cuidadores dessa herança sagrada que o Universo e Deus nos entregaram que é esse Planeta, vivo, que se autorregula, de cujo útero todos nós nascemos?

É aqui que, novamente, se recorre ao cuidado como uma possível definição operativa e essencial do ser humano. Ele inclui um certo modo de estar-no-mundo-com-os-outros e uma determinada práxis, preservadora da natureza. Não sem razão, uma tradição filosófica que nos vem da antiguidade e que culmina em Heidegger e em Winnicott defina a natureza do ser humano como um ser de cuidado. Sem o cuidado essencial ele não estaria aqui nem o mundo que o rodeia. Sustentabilidade e cuidado, juntos, nos mostram um caminho a seguir.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Festa para quem crê no amor


Marcelo Barros
Monge beneditino e escritor
Adital

Neste ano, no Brasil, enquanto o comércio e a sociedade recordam o "dia dos namorados”, Igrejas cristãs celebram neste próximo domingo, o último dos cinqüenta dias da festa da Páscoa (Pentecostes). Conforme a tradição cristã, neste dia, se espalhou pelo mundo o Espírito Divino. A comemoração do dia dos namorados é uma boa coincidência com esta festa pelo fato de que o Espírito se revelou como energia de amor.

Uma sociedade que reduz as pessoas a peças de produção e de consumo não compreende a linguagem do amor, porque faz as pessoas sobreviverem na competitividade e na luta meramente egoística. Por outro lado, quanto mais uma realidade é preciosa e rara, mais são frágeis as palavras para expressá-la. Hoje em dia, o próprio termo "amor” parece reduzido a emoções rápidas e a experiências passageiras. Poucos crêem no amor como princípio e luz de toda a vida. E se o amor não é reconhecido além dos confins do consumismo e do imediatismo comercial, as pessoas passam a viver meramente em função do dinheiro, da busca ansiosa de poder, ou simplesmente do culto de si mesmo. Em um contexto assim, até os crentes esquecem que Deus é Amor e se manifesta em nós e no universo, nos divinizando à medida que nos torna mais capazes de amar. Martin Buber, grande espiritual judeu, dizia: "Os sentimentos moram no ser humano, mas é a pessoa que mora no seu amor”. Quando se descobre e se vive isso, aí sim o amor é casa e estrada de vida, enraizamento e transcendência. É a única energia que conduz a vida à sua plenitude.

Camus dizia: "Não ser amado é uma falta de sorte, mas não amar chega a ser uma tragédia imensa”.

Conforme a Bíblia, toda pessoa que ama vive uma experiência divina porque Deus é fonte de todo amor humano. Mesmo no meio das imperfeições e buscas afetivas, o Amor divino conduz a pessoa a formas de amar mais profundas e generosas. Desde o começo da Bíblia, Deus prometeu estabelecer uma presença no mundo e guiar as pessoas que se abrissem à sua inspiração. Revelou-se presente na criação fazendo de cada criatura viva um sinal do seu amor e de sua bênção para o universo. Manifestou-se como fonte de bênção no canto dos pássaros, no vento que faz sussurrar as palmeiras, no riso das crianças e em cada pessoa aberta ao Espírito. Em tempos mais antigos, deu vários sinais de que queria fazer uma aliança de amor com a humanidade e com todos os seres vivos do universo. Revelou-se plenamente presente na pessoa de Jesus de Nazaré, testemunha da ternura divina para com toda a humanidade. De acordo com a fé cristã, a partir da ressurreição de Jesus, o Espírito Divino foi dado a todas as criaturas. Um cântico de Pentecostes afirma: "Ele enche o universo, abarca toda a sabedoria e abraça todo ser que existe”. O texto mais conhecido sobre Pentecostes (At 2) diz que, quando o Espírito vem dá às pessoas que o recebem a capacidade de se comunicar com as mais diversas culturas e criar uma unidade onde antes só havia divisão e discórdia. Hoje, o Espírito Divino guia comunidades e pessoas de todas as religiões e mesmo sem nenhuma pertença institucional a se unirem em função da paz do mundo, da justiça e da defesa da natureza. Um documento do século II de nossa era dizia: "Se queres encontrar o Espírito, podes descobri-lo presente e atuante no murmúrio do vento, no pulsar de toda a natureza e até quando levantas uma pedra”. O Espírito nos confirma sempre que cada ser vivo é sinal da bênção original do amor divino que fecunda o universo. Na Idade Média, Ibn Arabi, místico islamita, afirmava: "Meu coração é como um pasto para gazelas. Acolhe todas as crenças. É a tábua da lei judaica e, ao mesmo tempo, o Corão sagrado dos islamitas. Meu coração se faz Igreja para os cristãos e tenda aberta aos que buscam. Creio acima de tudo na religião do amor”.